quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O desejo de sonhar e o representante da realidade

Continuando a série vozes conflitantes dentro de mim, eis aqui outras duas que não conseguem se reconciliar de jeito nenhum. O desejo de sonhar e o representante da realidade:

Certo dia em baixo de uma arvore estava sentado um menino que se chamava o desejo de sonhar. Era uma arvore grande que ficava do lado de fora das muralhas que cercavam a cidade onde viviam os homens grandes. A sombra dessa árvore era o seu lugar preferido. O barulho e a correria do mundo normal ficavam la dentro protegidas pelas muralhas da cidade. O engraçado era que o desejo de sonhar só se sentia protegido do lado de fora das muralhas, e nunca do lado de dentro. Lá ele se sentida morto, esmagado, sufocado. Sufocado por uma especie de vida que lhe era completamente alheia mas que era imposta por todos e martelada em sua cabeça sem a menor piedade. Então o desejo de sonhar vinha constantemente para a sua arvore querida que sempre lhe oferecia sombra e frutos sem lhe pedir nada em troca. Era o seu lugar no mundo. Se sentia bem ali. Porém nesse dia alguém apareceu para conversar com ele. Era um homem alto. De terno e gravata. Um profissional. Ele estava vindo de dentro da muralha para dizer algo ao desejo de sonhar que logo que o viu começou a morrer de medo. Pois pensava. Será que até aqui do lado de fora eles não me deixaram em paz? E eis que homem alto chegou mais perto, e assim foi a conversa entre os dois:

RR - Olá, eu sou o representante da realidade. Por acaso é você que é o desejo de sonhar?
DS - Sim, sou eu? O que você quer aqui?
RR - Eu quero ajudá-lo a se adaptar a vida em sociedade.
DS - Não, obrigado!
RR - Mas você não tem escolha. Você tem que viver em sociedade, senão morrerá!
DS - Prefiro a morte então. Suma daqui!
RR - Mas você é teimoso hein moleque. Que que há de errado com você? Lá dentro das muralhas exitem milhares de pessoas que todos os dias levam a vida do jeito que se espera deles. Porque você simplesmente não pode fazer o mesmo? Você é especial por acaso?
DS - Eu simplesmente não quero. Aquele tipo de vida não serve pra mim. Eu não quero uma vida sem sentido. Acordar, trabalhar, comprar, voltar a casa para ver televisão e dormir? Não, obrigado. Se não querer se sujeitar a isso é ser especial, então sim, eu sou. Agora me deixe em paz!
RR - Moleque presunçoso! Você fica aí sem fazer nada em baixo dessa árvore sem produzir nada. Imagine se os outros decidissem fazer o mesmo? Quem iria produzir comida, roupa, materiais? É preciso trabalhar, seu preguiçoso maldito.
DS - Preguiçoso maldito? Você já olhou para si mesmo? para sua alma? Você não trabalha e trabalha apenas como um meio de fugir de quem você é? Por preguiça de tirar algum tempo para tentar entender e descobrir quem você é o que você realmente quer da vida? Você é o ápice da preguiça. Da fuga. Do medo. Você veste esse terno maldito e usa esse nome trabalho para esmagar aos outros. Para deixá-los completamente alienados de si mesmo, assim como você é. Por isso você tem medo de mim. Eu ousei olhar pra mim. Olhar para a minha alma. Ver que eu tenho alma que pede desesperadamente socorro. Você é tão fingido que não tem nem mesmo coragem de vir aqui e me dizer que você aqui veio para tentar me destruir e não para me ajudar. Vá embora, demônio!
RR - Mas precisa ser tão cruel assim?
DS - Cruel? Você escraviza e destrói a alma de todos aqueles a quem você toca. E você vem dizer que eu sou cruel? Sim, sou cruelíssimo. E a verdade é que quero ver você morto. Suma daqui!
RR - Desculpe. Não sabia que isso te machucava tanto.
DS - Machucar? Machucar? Eu fui é torturado toda minha vida lá dentro. Rejeitado, esculachado. Eu sofria desesperadamente e não me davam nem mesmo o direito a sonhar. Nem isso. Você entende o que significa não poder viver nem mesmo minimamente exatamente a essência daquilo que você é?
RR - Desculpe. Eu nunca havia visto a coisa nesse sentido.
DS (com lágrimas nos olhos) - Saí daqui, e me deixe só, como eu sempre fui.
RR - Desculpe, sinceramente nunca havia pensado no seu lado. Nunca havia percebido que em você existia um ser humano também. E pra ser sincero um ser humano mais humano do que eu. Gostaria de me redimir do que sempre fiz a você. Gostaria realmente de te dar algo. Mas não sei o que posso te dar. Não sei o que eu tenho que você gostaria de ter.
DS - Eu só queria é ser aceito como eu sou. Eu sinto falta da sociedade. Da minha cama do meu quarto. Eu gostaria mesmo é de viver lá como eu vivo aqui. Simplesmente sendo eu mesmo. Assim inclusive não me importaria com as pessoas que simplesmente acordam, trabalham, compram, voltam para casa para ver televisão e dormem.
RR - Eu não posso garantir pelos outros meu caro amigo. Eu represento a realidade e eles são reais. Muito reais. E também humanos, mesmo que não apreça assim aos seus olhos. Mas te garanto que farei o melhor que posso para que você encontre o seu lugar. Onde quer que ele seja.
DS - Há bondade em você. Nunca havia visto isso.
RR - É porque até hoje eu mesmo não sabia disso. Mas você me inspirou meu caro amigo. Você tocou algo em mim. E eu estou grato a ti.
DS - Eu aprendi algo com você. Vejo que as pessoas lá de dentro também são humanas. E elas sofrem. Sofrem quietas, sem nem mesmo perceber isso. Por sofrerem tanto, perdem a capacidade de sonhar, e por isso se tornam violentas com quem tenta sair desse ciclo. Se eu pudesse ao menos levar esperança a eles ao invés de simplesmente tenar matá-los assim como eles fizeram comigo...
RR - E eu confio em ti meu caro amigo. Vejo ódio, raiva e dor em ti. Muito justo. Eu entendo. Mas vejo também que não é isso que você quer trazer de volta para a cidade. Você quer transformar isso em algo diferente. Em algo doce. Meigo. Suave. Humano. E por isso você veio aqui pro lado de fora da muralha. No fundo foi para transformar essa energia que está em ti. Para encontrar essa leveza perdida que está embaralhada em sua alma. No fundo você fez isso não por ódio a cidade e às pessoas que lá vivem, mas sim por amor à elas.

E de repente as lágrimas do desejo de sonhar que antes eram de dor, agora começaram a ser de esperança e aceitação. Era um choro bonito e libertador. O representante da realidade nunca havia visto um choro daqueles. E era real. O amor naquele menino era real, apesar de tudo que ele sofreu e de todas as feridas que haviam em sua alma. Assim os dois se abraçaram. Choraram juntos. Deram adeus um ao outro. E cada um voltou ao seu lugar. Um para a cidade e o outro debaixo da árvore. Mas agora já não se odiavam mais. Eram amigos. Se respeitavam, e por isso entenderam que ainda não era hora de morarem juntos. Mas que esse dia chegaria. Pelo menos assim os dois agora desejavam.