sexta-feira, 11 de junho de 2010

O encontro


Senhores, hoje eu tenho algo muito especial para contá-los. Hoje eu tive um encontro com Deus.
Sim, vocês podem não estar acreditando, mas hoje finalmente ele resolveu aparecer para mim. Eu estava sozinho no meu quarto lendo A Gaia Ciência do meu amigo Nietzsche, quando de repente uma energia sem forma apareceu do nada na minha frente, e eis que ela me disse: "Olá, eu sou Deus."
E a conversa seguiu da seguinte maneira...

Eu - Eu não acredito. Eu te matei a alguns anos atrás, como é que você pode ainda estar vivo?
Deus - Existem muitas coisas que você ainda não entende. Eu não posso morrer. Se eu pudesse morrer pode estar certo que eu mesmo já teria me matado a muito tempo. Ou você acha que é agradável passar toda a eternidade aguentando a todos os tipos de seres humanos jogando a responsabilidade por tudo que ocorre em suas vidas em cima de mim?
Eu - Uai! Mas no fim das contas a culpa é toda sua. Afinal, foi você quem os criou desse jeito.
Deus- Tá bom eu já sei. Não precisa jogar isso na minha cara. Na verdade é exatamente por isso que eu estou aqui. Para que você mande uma mensagem a eles em meu nome. Para ajudá-los.
Eu - Não vem com essa não. Todo mundo que até hoje falou em seu nome só falou bobagem. Se você quiser mandar uma mensagem para os humanos procure algum cristão, ou melhor, vai num centro espírita que lá eles vão adorar encorporar Deus.
Deus - Desculpa, mas vai ter que ser você. Não tem outro jeito.
Eu - Como assim?
Deus - Acontece que os mensageiros que eu enviei não deram muito certo. Não posso culpá-los, pois a maioria falou exatamente o que eu disse para eles falarem. Acontece que a coisa deu errada, e por isso eu mudei de opinião.
Eu - Mas pode um Deus mudar de opinião?
Deus - Claro! Eu posso tudo. Você por um acaso se esqueceu que eu sou Deus?
Eu - Tudo bem! Mas o que que passa na sua cabeça agora?
Deus - Eu preciso libertar a humanidade.
Eu - Libertar a humanidade de que?
Deus - De mim.
Eu - Nisso eu concordo.
Deus - Não precisa vir com gracinhas para cima de mim.
Eu - Desculpa! É que eu nunca havia conversado com um Deus antes. Essa experiência é nova para mim.
Deus - Isso é irrelevante. Apenas se concentre no que você terá que dizer.
Eu - Espera um pouco. Mas você ainda não me explicou porque tem que ser eu?
Deus - Pois obviamente eu não posso enviar essa mensagem por alguém que acredita em mim. Um cristão certamente pensaria que eu sou o Diabo, e não Deus. Eu não consigo mais conversar direito com nenhum cristão hoje em dia.
Eu - Sim, mas existem muitos outros ateus espalhados por aí.
Deus - Os ateus são piores ainda. Quem você acha que é mais crente? um ateu na minha não existência ou um cristão na minha existência? Eu vou te explicar melhor tudo. Parece que você é meio lerdo para entender as coisas.
(Deus fez uma pausa, pensou um pouco, respirou fundo e depois continuou)
Deus - O crente acredita em mim basicamente por um motivo. Ele tem medo da vida. Ele tem tanto medo da vida, tanto medo de ser o responsável por suas decisões, que joga tudo pra cima de mim. Como gostam de falar "Que seja o que Deus quiser". Porque tem que ser de acordo com o que eu quiser? Será que eles não percebem que eu os criei para serem donos de si mesmos, para serem livres, e não para serem escravos da minha vontade? Não tem jeito, se acontece algo de bom em suas vidas logo vem dando graças a Deus, como se fosse eu que tivesse proporcionado aquilo a eles. Quando acontece uma desgraça logo pensam "Deus sabe o que faz", "Ele escreve certo por linhas tortas". Não tem jeito, na vida deles absolutamente tudo que acontece eles acham que é por minha causa. Assim não dá mais. Eles tem que parar de levar a vida que eu quero e começar a levar a vida que eles querem.
Eu - Sim. Mas e os ateus?
Deus - Ah sim. Já ia me esquecendo. O que acontece é que os ateus também são movidos pelo medo da vida. Tá certo que de uma forma um pouco diferente, mas no fundo é o mesmo medo. Eles tem medo de viver em um mundo onde exista um Deus. Eles me negam por medo de acreditar que eu existo, por medo de serem punidos, por medo do inferno.
Eu - Mas eu confesso que esse medo me parece muito mais razoável.
Deus - Não interessa! No fundo é tudo crença. É tudo fé. O ateu tem fé de que eu não existo. Por isso é que eu não posso passar a minha mensagem por nenhum deles. Simplesmente eles não acreditariam que eu sou realmente Deus. Eles não aceitariam que eu existo nem se me vissem.
Eu - Mas e porque eu?
Deus - Mas você é devagar mesmo, hein?
Eu - Vem cá! Você quer que eu leve a sua mensagem ou não? Então é melhor você também parar com gracinhas.
Deus - Enfim, tem que ser você por um simples motivo. Quando a minha existência começou a te incomodar imensamente, ao invés de simplesmente não mais acreditar em mim, você decidiu me matar.
Eu - Mas antes de mim já houveram outros assim, não?
Deus - Sim, já houveram. E eu tentei passar a mensagem por muitos deles. Em alguns casos eu até tive um pouco de sucesso. Minha ultima tentativa foi em um tal de Friedrich que escreveu uns livros de filosofia por aí. Aquele lá sim, entendeu muita coisa do que eu disse. Na verdade acho até mesmo que ele conhecia o ser humano melhor do que eu. O problema foi que ninguém percebeu que tinha o meu dedo naquilo que ele disse. Por isso ninguém percebeu que até mesmo eu concordava com o que ele dizia. Para dizer a verdade eu aprendi muita coisa com ele.
Eu - Mas pode um Deus aprender algo com os humanos?
Deus - Como eu já te disse, eu sou Deus, eu posso tudo. Não me venha dizer o que eu posso ou não posso fazer.
Eu - Mas então...
Deus - O fato é que eu já não aguento mais os seres humanos. Eu já cansei de ser pai. Eu quero que eles cresçam e parem de uma vez por todas de precisar de mim. Eu quero finalmente me aposentar. Quero enfim descançar. E você precisa me ajudar.
Eu - E o que eu ganho com isso?
Deus - Como assim o que você ganha com isso? Virou mais um capitalista agora?
Eu - Hahaha! Você tá certo. Foi mal aí!
Deus - Mas então. Eu não vou te dar nada em troca. Eu não sou um comerciante. Vim até você pois sei que você terá um enorme prazer em livrar as pessoas da minha presença.
Eu - Realmente você tem razão. Já passou da hora de você sumir de vez da vida dos seres humanos. E isso realmente me dará um enorme prazer.
Deus - Por isso que eu vim a você. Ambos sairemos mais tranquilos dessa jornada. Eu terei mais paz de espírito e você terá a sua vingança contra todo o sofrimento acumulado pela vida não vivida que você levava em nome da "minha vontade", em nome da maldita "vontade de Deus".
Eu - Muito justo.
Deus - E que finalmente seja feita a vossa vontade, e não mais a minha!
Eu - Que assim seja!
Deus -Amém!

Depois disso Deus desapareceu. E confesso que pela primeira vez em muito tempo eu até tive simpatia por ele. Percebi que não apenas a humanidade precisa se livrar dele, mas também ele precisa se livrar da humanidade. Realmente não deve ser fácil ser Deus.
Enfim, aqui fica o registro de uma das conversas mais interessantes que eu já tive em minha vida. Hoje eu me encontrei com Deus.