terça-feira, 15 de março de 2011

O dia da grande festa

Era uma noite solitária no alto de uma montanha. Uma brisa leve e suave soprava no meu rosto. Os gritos que normalmente vinham do mundo lá em baixo estavam estranhamente quietos. Havia uma paz no ar que não costumava estar ali. A tranquilidade do alto da montanha costumava vir sempre de cima, mas naquela dia ela estava vindo também de baixo. O que era aquilo? Seria finalmente o grande dia? O grande meio-dia? Eu não esperava por aquilo. Nunca havia experimentado nada igual. Não daquele jeito. Onde foi parar a guerra que até ontem insistia em permanecer na minha alma? Será que o topo da montanha estava agora acessível às pessoas do mundo? Será que agora finalmente era hora de receber os meus convidados, o meu povo? Nunca achei que fosse realmente possível.
Primeiro veio o Rei me visitar, e com ele veio o seu escravo. Mas havia algo de diferente nos dois. O escravo havia entendido o peso que era para o Rei ter que governar a alguém. Havia percebido que não apenas ele era vítima do Rei, mas como também o Rei era vítima dele. Com isso o Rei se libertou do governar, e o escravo se libertou do ser governado. Ambos estavam livres para subir a montanha.
Logo após veio o padre, e com ele vinha o ateu. O padre sorria e festejava, pois havia finalmente se libertado da crença em um Deus. Estava agora livre para mergulhar na vida e experimentar o que quer que ela trouxesse sem nenhuma ideia prévia de como que a vida deveria ser. Sentia pela primeira vez como uma criança o gosto do que significava a palavra viver. Estranhamente quando o padre se libertou de Deus então o ateu pôde pela primeira vez experimentar a divindade escondida nos ventos que a vida trazia. Quando o padre desapareceu então o ateu festejou, pois agora ele podia em paz se encontrar com o sopro do divino que há muito tempo batia à sua porta. Os dois se abraçavam e cantavam em um gozo quase infinito por tamanho prazer em experimentar tal liberdade. Estavam prontos para subir até o topo da minha montanha.
E as pessoas não paravam de subir. Elas vinham de todos os cantos. Uma enorme festa estava tomando forma. Inclusive as estrelas no céu haviam percebido e naquela noite brilhavam com uma intensidade nunca vista antes. Era como se a lua chorasse por jamais ter visto tão bela cena. A própria noite não parecia mais noite. Não se sabia se era noite ou se era dia. Ambos pareciam iguais naquele momento.
E nisso veio o guerreiro e o pacifista. O guerreiro havia percebido que a suas guerras no fundo eram apenas para descarregar a guerra que ele carregava dentro de si mesmo, e o pacifista percebeu que exigir paz de um guerreiro era uma violência tão grande quanto a própria guerra.
Atrás deles vinham o fascista e o anarquista. O fascista agora entendia que seu ódio à liberdade individual, que o seu ódio ao anarquista, nada mais era do que ódio que tinha por si mesmo por não se permitir gozar a vida da maneira que sua alma pedia, e o anarquista entendeu que o seu ódio ao fascista nada mais era do que o ódio que tinha pelo seu fascista interior que insistia em controlar aos outros e a si mesmo através de uma moral da liberdade.
E assim veio o belo e o feio, o bom e o mal, o forte e o fraco, o preguiçoso e o trabalhador, o inteligente e o burro, o pobre e o rico, Deus e o Diabo. Todos vinham abraçados por terem percebido que o combate que travavam entre si nunca havia de fato sido entre si, mas sempre contra si mesmos. O que não aceitavam no outro, no fundo era algo que não aceitavam em si mesmos. Quando um se libertou então o seu oposto, o seu irmão, o seu igual, também se libertou, se tornaram um só, e com isso estavam agora leves o suficiente para subir ao topo da montanha.
Foi então que raios de sol começaram a surgir entre as estrelas. A noite estava já ensolarada. O ar que nos envolvia estava diferente. E foi nesse momento que levei a maior surpresa de minha vida. A montanha na qual vivia já não me parecia mais tão alta, e o mundo lá em baixo na realidade não estava mais "lá embaixo". Foi então que eu também percebi algo. A montanha nunca havia de fato existido. Nós sempre havíamos sido iguais. E com isso agora era eu que estava leve o bastante para me juntar as pessoas do mundo e finalmente celebrar com eles a nossa festa. A grande festa.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Discurso sobre a crueldade e algo mais


Qual é o problema em se ser cruel? Não vejo resposta nenhuma que seja digna de uma alma elevada. Esperar dos outros e de si mesmo apenas bondade e caridade não é também uma forma de crueldade? uma forma de ser contrário a vida? de ser contrário a Deus?
O Diabo não existe separadamente de Deus. Eles são duas partes de uma única coisa. A guerra entre céu e inferno só existirá enquanto existir a separação entre Deus e o Diabo. O dia em que eles se tornarem um só, o dia em que eles deixarem ambos de ser bebês chorões e acordarem para a vida, para a realidade de que eles são irmãos muito próximos, quase gêmeos, aí então toda essa maluquice de corpo e espírito desaparecerá.
Espiritualidade é o nome que se dá para a covardia daquele que quer fugir da vida. Espiritualidade nada mais é do que um profundo desejo de se cometer suicídio. A vida não impõe separação nenhuma. Quem quiser ser digno da vida terá que se encontrar com ela cara a cara. E não fugir dela.
Se a vida te traz violência e crueldade é para que você veja o que você tem dentro de si e que você esconde de si mesmo no fundo de sua alma. As maiores atrocidades já cometidas até hoje não foram sempre cometidas em nome do amor ao próximo? Em nome de um Deus de amor infinito? Em realidade, pode existir violência maior do que achar que o próximo precisa do seu amor? Ou melhor dizendo, pode existir violência maior do que achar que isso que você chama de amor seja digno de alguma coisa?
No fundo, o que é isso que você chama de amor senão medo, insegurança e covardia? Medo de ser odiado. Insegurança por temer descobrir que você não vale nada para ninguém, já que você não vale nada para si mesmo. Covardia de assumir ser quem você realmente é.
Geralmente se esconde tudo aquilo que a moral nega, e esse é o maior dos crimes contra a vida. Pois quase sempre, aquilo que rejeitamos em nós mesmos é justamente o que nos tornaria almas mais nobres, seres mais dignos da vida. O que você menos aceita em si mesmo, normalmente é o que de melhor há em você.

Trechos de Crepúsculo dos Ídolos de Friedrich Nietzsche


Erro da vontade livre.
- Hoje já não temos mais nenhuma compaixão pelo conceito de "vontade livre": sabemos muito bem o que ele é - o mais suspeito artifício dos teólogos que existe; um artifício que tem por objetivo fazer com que a humanidade se torne "responsável" à moda dos teólogos, isto é, que visa fazer com que a humanidade seja dependente deles... Eu ofereço aqui apenas a psicologia de toda e qualquer atribuição de responsabilidade. - Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma estar em ação o instinto de querer punir e julgar. Despiu-se o vir-a-ser de sua inocência, quando se reconduziram os diversos modos de ser à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade. A doutrina da vontade é inventada essencialmente em função das punições, isto é, em função do querer-estabelecer-a-culpa. Toda a psicologia antiga, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes no topo das comunidades antigas, queriam criar para si um direito de infligir penas - ou queriam ao menos criar um direito para que Deus o fizesse... Os homens foram pensados como "livres", para que pudessem ser julgados e punidos - para que pudessem ser culpados. Conseqüentemente, toda ação precisaria ser considerada como desejada, a origem de toda ação como estando situada na consciência (- com o que a mais fundamental fabricação de moedas falsas transformou-se, no interior do psicologicismo, em princípio da própria psicologia...). Hoje, quando adentramos o movimento inverso, quando nós imoralistas buscamos novamente com toda força sobretudo retirar do mundo o conceito de culpa e o conceito de punição, purificando destes conceitos a psicologia, a história, a natureza, as instituições e as sanções comunitárias, não há em nossos olhos nenhum antagonismo mais radical do que o em relação aos teólogos que continuam a infectar a inocência do vir-a-ser com as noções de “punição” e "culpa", a partir do conceito de "ordem moral do mundo". O cristianismo é uma metafísica de carrasco...


Qual pode ser nossa única doutrina?
- Que ninguém dá ao homem suas propriedades; nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele mesmo (- o contra-senso da representação, aqui por fim recusada, é ensinado por Kant, e talvez mesmo já por Platão, como "liberdade inteligível"). Ninguém é responsável em geral por ele existir, por ele ser constituído de tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias, nesta ambiência. A fatalidade de sua existência não pode ser separada da fatalidade de tudo o que foi e de tudo o que será. O homem não é a conseqüência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita a tentativa de alcançar um "ideal de homem" ou um "ideal de felicidade" ou um "ideal de moralidade". - É absurdo querer fazer rolar sua existência em direção a uma finalidade qualquer. Nós inventamos o conceito de "finalidade": na realidade falta a finalidade... É-se necessariamente, se é um pedaço de fatalidade, se pertence ao todo, se está no todo. Não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo! Que ninguém mais seja responsável, que o modo de ser não possa ser reconduzido a uma causa prima, que o mundo não seja uma unidade nem enquanto mundo sensível, nem enquanto "espírito": só isso é a grande libertação. - Com isso a inocência do vir-a-ser é restabelecida... O conceito de "Deus" foi até aqui a maior objeção contra a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em Deus: somente com isso redimimos o mundo.