sábado, 1 de outubro de 2011

Conto do livro Temporais de Khalil Gibran



Os dentes cariados

Havia na minha boca um dente cariado. Era um dente ardiloso e malvado: permanecia quieto o dia todo; e só começava a doer de noite, quando os dentistas estavam dormindo e as farmácias, fechadas.
Certo dia, perdi a paciência e procurei um dentista e lhe disse: "Livre-me, por favor, deste dente hipócrita."
O dentista objetou: "Seria tolice arrancar um dente que podemos tratar."
E começou a cavar e limpar e desinfetar. Quando o dente não tinha mais cárie, o dentista o obturou e declarou com orgulho: "Este dente está agora mais sólido do que os outros."
Acreditei nas suas palavras, enchi suas mãos de dinheiro e fui embora, satisfeito.
Mas uma semana depois, o maldito dente voltou a atormentar-me.
Procurei outro dentista, e disse-lhe: "Arranque este dente sem discutir. Pois sofrer é diferente de ver sofrer."
O dentista arrancou o dente. Foi uma hora terrível, mas benéfica. E, examinando o dente, disse: "Fez bem em arrancá-ló. A cárie já atingira as raízes. Não havia meio de recuperá-lo."
Dormi em paz naquela noite e em todas as noites seguintes.
Na boca deste ser que chamamos a Humanidade, há também dentes cariados. E a cárie já atingiu a raiz. Mas a Humanidade não os arranca. Prefere tratá-los e limpá-los e obturá-los com ouro brilhante.
Quantos dentistas estão ocupados em tratar os dentes da Humanidade! E quantos doentes se entregam a esses médicos; e sofrem e aguentam - para depois morrer.
E a nação que enfraquece e morre não ressuscita, para revelar suas doenças ao mundo e a ineficácia dos remédios sociais que a levaram ao túmulo.
Na boca das nações orientais, há também dentes cariados, sujos e nauseabundos. Nossos dentistas tentam obturá-los. Mas esses dentes não se curarão. É preciso arrancá-los. Pois a nação que tem dentes cariados tem o estômago debilitado.
Quem quiser ver os dentes cariados de uma nação oriental, visite suas escolas, onde os homens de amanhã decoram o que Al-Akfash disse, citando Sibauaih, e o que Sibauaih dissera, citando os cameleiros.
Ou visite os seus tribunais, onde a astúcia esvazia as leis.
Ou visite os palácios dos ricos, onde o esnobismo coabita com a hipocrisia.
Ou visite os casebres dos pobres, onde a ignorância gera o medo e a covardia.
Depois, visite os dentistas de dedos macios e aparelhos complicados. São eles que fundam as associações e reúnem os congressos e discursam nos conclaves e nas praças públicas.
Suas palavras são melodiosas e suaves. E se lhes dissermos: "Esta nação mastiga seus alimentos com dentes cariados e saliva envenenada. E disto resultarão doenças no seu estômago", eles respondem: "Sim, sim, estamos justamente estudando as drogas mais modernas e os medicamentos mais eficazes."
E se lhes perguntarmos: "E que achais da extração?", desatarão a rir do pobre indagador, que nunca estudou a nobre ciência da odontologia.
E se insistirmos, enfadam-se e afastam-se, dizendo: "Quantos ignorantes neste mundo! E como sua ignorância é incômoda!"

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Últimos sopros antes de mais um novo final

- Não vejo ninguém defendendo o conhecimento. Tudo o que vejo são pessoas defendendo a si mesmas enquanto conhecedoras.
- As pessoas insistem em continuar falando sobre passado e futuro. Porém confesso que não entendo, pois até hoje nunca consegui sair do presente.
- Bem aventurados os que choram foi o que disse o filho do homem. Porém, ainda mais bonito seria dizer "bem aventurados os que riem".
- O futuro é algo que você inventa apenas para ter uma desculpa para se julgar imperfeito no presente.
- O desejo em se julgar imperfeito no presente é as vezes tão grande que as pessoas passam até mesmo a glorificar passados que inclusive não gostavam quando estes eram presente. Glorificar o passado muitas vezes não passa puramente de desejo de julgar imperfeito o presente.
- Porquê você procura um critério para guiar a sua vida? Não é apenas para ter uma desculpa para alimentar o seu desejo de fazer julgamentos?
- Quando as pessoas dizem "Eu era feliz e não sabia", o que estão realmente dizendo é "Eu era infeliz e sabia".
- Lembre-se que sempre que você fala "mas infelizmente a vida é assim", o que você está realmente dizendo é "mas infelizmente a minha vida é assim".
- De que adianta se clamar "experiente"? Talvez toda a sua experiência tenha até hoje apenas te enganado. Nesse caso, a sua grande experiência apenas te ajudou a se tornar um grande idiota.
- Só se faz de vítima quem se sente culpado.
- É necessário ter força para ser bondoso e humilde.  O fraco, mesmo que tente, não consegue ser bom com autenticidade. Ele precisa receber e não dar. Doença não se deve compartilhar.  Porém, vale a pena ressaltar que não é sendo bom e humilde que nos tornamos fortes, mas sendo forte, que nos tornamos bons e humildes.
- O desejo de conquista surge não da força, mas da dúvida na própria força. Ele surge de uma vontade de mostrar a si mesmo que se é forte, de testar a própria força, de colocá-la a prova para que se possa ganhar confiança de que de fato se é forte. O forte que já tem pura consciência de sua própria força, esse não se torna um conquistador, esse se torna humilde. 

sábado, 27 de agosto de 2011

Outra vez a mesma gentinha!

Houve uma época em que os religiosos eram os únicos letrados, e faziam questão de justificar isso por alguma necessidade divina, mantendo assim o poder sobre aqueles que não sabiam ler e escrever. Hoje vemos isso como um absurdo, pois é claro que é bom que todos sejam alfabetizados.  Para nós hoje é muito claro que é importante que todos saibam ler e escrever para que assim sejam livres para ter a própria interpretação daquilo que leem. E também para que leiam aquilo que quiserem. Assim toda a vida se torna mais democrática e mais rica. Sabemos que aquela época era absurda e que aqueles poucos padres que tinham o poder escolher, filtrar e interpretar o que os outros tinham o direito de ouvir estavam na verdade cometendo um crime contra a humanidade, ajudando a torná-la fraca, doente e submissa. Agora pasmem! Eles estão de volta. Querem dessa vez o monopólio sobre a mediunidade e o contato com o mundo dos espíritos. Outra vez a mesma gentinha fazendo a mesma coisa. Querendo monopólio e exclusividade de algo que é natural e intrínseco a toda a existência humana. Querem ser donos de algo que deveria ser um direito inato de cada um para que possa ser usado de infinitas maneiras assim como são infinitas as diversidades humanas.
Ao se criar um manual de como se utilizar a mediunidade, se torna monótono, cinza, repetitivo, covarde, fraco, feio, aquilo que poderia e deveria ser alegre, colorido, diverso, poético, vivo. Se torna pobre algo que deveria ser rico. E essa desculpa de que estão os protegendo de coisas que não entendem já não cabe mais. Isso é papo de quem por ser muito baixo e mesquinho tenta intimidar os outros com medo de perder uma posição de prestígio em relação a algum conhecimento. Pois no fundo sabem que se os outros tiverem acesso a esse conhecimento, rapidamente eles o ultrapassarão, e assim a sua baixeza ficará novamente escancarada. Além disso, nem todos são fracos e covardes a ponto de terem medo de obsessores. Existem muitos que adoram uma boa batalha. E batalhando crescem e florescem. Quem já participou de muitas batalhas sabe como elas são importantes para nosso crescimento e amadurecimento. Só quem é muito fraco acha bonito fugir da luta quando ela aparece. A fraqueza, a covardia e o medo não deveriam ser ensinados como virtude sobre o falso nome de prudência.

Sobre a verdade, o saber, os espíritos e os homens.

- Se você usa a verdade para justificar uma fraqueza sua, então essa verdade para você é pior do que uma mentira. Uma mentira quando dita com sinceridade não faz tanto mal assim.
- Em uma luta entre o seu corpo e o seu espírito, independentemente de quem ganha, quem perde é você.
- Quem já sabe perde a capacidade de aprender. E me parece que capacidade de aprender faz muito mais bem do que o saber em si. Talvez por isso Sócrates tenha dito: "Só sei que nada sei". Ou em outras palavras: Ainda estou livre para aprender tudo.
- É engraçado mas me parece que o saber é sempre morto e que o aprender é sempre vivo. O saber me torna duro, defensivo, velho, feio, estático. O aprender me dá movimento, dança, alegria, beleza, juventude, sabedoria.
- Não é só porque você tem medo de obsessores que todas as outras pessoas também tem que ter. Nem todos são fracos, medrosos e covardes como você. Existem muitas pessoas que gostam de uma boa batalha, de uma boa aventura, de um bom desafio. Eles sabem que evitar as lutas é evitar a vida.
- Fugir de batalhas, fugir do sofrimento, fugir da solidão, fugir do desconhecido, fugir do medo, fugir do fracasso, fugir da derrota, fugir da morte, tudo isso tem um nome só. Fugir da vida.
- Eu não tenho problema nenhum com Deus. Eu só não gosto de escutar essa palavra quando ela vem da boca de alguém como você. O homem por trás da palavra as vezes é muito mais importante do que a palavra em si. Por isso é que de sua boca jamais sairá nenhum Deus autêntico. Se você quiser falar em Deus, então cuide para que você já o tenha encontrado pessoalmente, e não apenas lido o seu nome por aí nas páginas de algum dos seus livros sagrados.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Aforismos de uma época que chega ao fim

- Só tem interesse por vidas passadas quem perdeu interesse pela vida presente.
- Se você não é capaz de rir do que você faz, então é melhor não fazer.
- Muitos falam sobre os efeitos nocivos para a saúde do uso do álcool. Será que algum dia alguém terá coragem de falar sobre os efeitos nocivos para a saúde de se reprimir o desejo de se embriagar?
- Eu até entendo que você goste de lama. Porém não me peça para dar um nome bonito para algo que é feio. Lixo é lixo.
- Um jovem que procura levar uma vida de adulto não é alguém avançado no tempo. É apenas um covarde que não tem coragem de escutar os seus sonhos. Nada além disso.
- Não é a arte da psicografia apenas um remédio para aquele que não tem capacidade ou mesmo coragem de escrever sozinho?
- O corpo físico tem os seus instintos. Isso todos nós sabemos. Agora pasmem! O corpo pisiquico também tem os seus instintos. Os chamamos de sentimentos.
- E para o seu espanto eu digo ainda mais. O corpo mental também tem os seus instintos. Um deles é conhecido como inteligência. Sim! Inteligência não passa também de instinto.
- Somos o quê então afinal? Apenas um amontoado de instintos? Tenha calma, alma precipitada. Ainda nem chegamos na consciência.
- O fato da vida surgir através do ato sexual tem um simbolismo muito profundo. A energia sexual é a energia base que dá sustentação a quase todas as outras energias que fluem pelo corpo. Falta de fluidez no chacra sexual causada por algum tipo de estagnação na vida sexual leva o indivíduo necessariamente a algum tipo de perversão. Ou seja, nesse caso ele se torna um religioso, um filósofo, ou algo do tipo.
- Excesso de perguntas sobre o porquê da vida e coisas do tipo não passam apenas de consequências de algum tipo de estagnação da vida sexual.
- Só pensa sobre a vida quem tem medo de viver a vida.
- Uma vida sexual ativa e sadia apagaria pelo menos 90% de todas as questões religiosas e filosóficas. E estou quase para dizer o mesmo sobre a ciência. Afinal, ter tanto interesse em colidir partículas quase a velocidade da luz apenas para saber o que tem dentro do elétron, não é também um sintoma claro de falta de atividade sexual?
- Fé em Deus é apenas um sintoma da falta de fé em si mesmo.

domingo, 7 de agosto de 2011

O grito de vida

Ó vida minha querida. Agora chegou a sua hora. Agora chegou a nossa hora. Já chega dos anos de silêncio. Já não dá mais para guardar. Não, não dá mais. Ficou grande demais. Já não suporto. Preciso me livrar disso tudo. Preciso gritar tudo isso. Ó sábia vida, eu sei que você que é a dona do tempo. Você que é a dona do momento. Então como faremos? O que faremos? O que faremos hoje? O que escreverei aqui e agora minha querida amada? O quê? Um sopro do que significa viver? Um sopro? Sim, um sopro. É o máximo por hoje. Não tente entender meu querido companheiro. Como é estranho alguém tentar entender a vida. O que é a vida? Não percebem que vocês são a vida? Você é a vida! Como estar em busca da vida? Sim eu entendo, mas agora sou eu que falo, então me escute. A vida é você. Muito mais do que você pensa. Como assim pensar sobre o que é a vida? Como pode a gota pensar sobre o oceano? Ela não vê que ela é o oceano? Todos os mistérios da existência estão em vocês meus queridos. Meus companheiros. Meus irmãos, meus camaradas. Meus outros eus. A vida está em tudo. Ela está em todos. Ela está no nascer, ela está no morrer. Ela está no chorar, ela está no sorrir. Ela está no vencer, ela está no perder. Ela está no amar, ela está no odiar. Ela está na companhia, ela está na solidão. Em tudo. Para onde quer que você vá meu querido. Do jeito que você quiser ir e com quem você quiser ir, sim a vida estará lá. Pois não há nada além dela. A vida é tudo. A vida é toda. Você é a vida. Você é todo. Em você está o todo. Você é o todo.

sábado, 6 de agosto de 2011

O louco outra vez

E ainda têm a coragem de me dizer que é preciso disciplina para produzir, que é preciso regras, horários, normas, leis, força, polícia, estado. Já chega bando de malucos. Vocês já destruíram a verdadeira capacidade criativa humana por muito tempo. Loucos criadores de leis. Tudo que veio até hoje de sua disciplina foi feio, foi cinza, foi triste, foi infeliz e sem graça assim como são todos vocês. Não venha me falar que não existe produtividade livre na natureza humana. Quem são vocês para falar de natureza humana? Vocês nem humanos são direito, quanto mais "naturais". Existe alma no homem. Existe espírito que não aguenta apenas ser corpo e viver só de comida. Existe espírito e criar é o alimento dele. Produzir beleza, ser a si mesmo, amar, isso pede o espírito assim como o corpo pede água. Se vocês ainda estão a quilômetros de distância de perceberem que vocês possuem uma alma então que criem a miséria que vocês queiram, porém por favor comecem a fazer isso apenas entre vocês. Nos deixem em paz malditos! A alma precisa de alimento também, e a liberdade é sua única semente possível. Dê liberdade aos homens de espírito e veja se eles não são capazes de criar infinitamente mais do que todos vocês. E todos os homens tem espírito. Até mesmo vocês, apesar de suas almas estarem estraçalhadas de tanta violência que é a base de tudo que vocês fazem. Até mesmo vocês tem alma. Mesmo que ela esteja cansada, dilacerada, esmagada e destruída. Deem liberdade a quem tem espírito e vejam se trabalho e criação não brotarão livremente de suas naturezas. Criar para eles não é um dever, é uma necessidade. Eles não são como vocês pensam malditos homens engravatados. Vocês não entendem nada sobre nada. Vocês desfrutam violência porque essa é a única fonte de gozo que vocês encontraram. Vocês condenaram até mesmo o sexo, oh infelizes camelos sem significado. "Obediência" é a única coisa que escuto vindo de vocês. Oh homens dilacerados que ainda não tem coragem de se rebelar. Quantos segredos e mistérios a vida ainda tem guardado para vocês. Mas mistério é uma palavra que ainda dói aos seus ouvidos. Vocês querem é certeza. Pois tudo que vocês fazem é fruto do medo. Só procura certeza quem morre de medo. Coragem te leva para o desconhecido, para o incerto, para a existência. Mas isso é algo que suas regras jamais entenderão, oh homens admiradores daquilo que é lama. Homens criadores de feiúra, que esteja a chegar o dia em que brotem em vocês um pingo de clarividência para que possam ver o podre que surgiu de tudo aquilo que vocês fizeram. Ou então o dia em que o espírito ganhe também força. Que o espírito vire também corpo e ganhe resistência. Aí então quem sabe ... quem sabe não destronaremos aqueles últimos infelizes que ainda insistem em ser reis. Que o espírito ganhe força. Já passou da hora da revolução que vem da alma.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Sobre Deus, a verdade e algo mais

- O cientista também tem o seu Deus. Ele se chama verdade.
- Queres uma verdade intocável para quê alma orgulhosa? Não é para se tornar também ... intocável?
- A busca pela verdade é apenas um sintoma da busca por poder. Vontade de potência como diria Nietzsche.
- Uma vez ouvi dizê-lo: "Podem me destruir, mas jamais destruirão a minha verdade". Mas espere um pouco! Não é a sua verdade, no fundo, ... você?
- E foi assim que ouvi o grito de liberdade que veio enlouquecido do fundo da minha alma: " Eu não quero mais um Deus dilacerado. Eu quero um Deus que saiba rir. Inclusive de si mesmo".
- Se o seu Deus não te faz rir, então procure companhias melhores, pois essa não é digna de você.
- Sempre tenha cuidado ao construir uma estátua com pedra. Pois você terá que usar dinamite se um dia quiser destruí-la.

sábado, 23 de julho de 2011

Sinais de uma espiritualidade elevada

- Você é daqueles que ainda tem medo de obsessores ou já são os obsessores que tem medo de você?
- Você é daqueles que procura nos espíritos guias espirituais ou apenas companheiros de viagem?
- A sua espiritualidade faz de você um menino que precisa escutar dos outros o que fazer ou ela te torna um homem capaz de decidir as coisas por si só?
- Você é daqueles que roga por Jesus pedindo salvação ou daqueles que já percebeu que Jesus te ofendeu ao pensar que você precisava de alguém para ser salvo?
- Porém vale a pena ressaltar que não se pode culpar Jesus por causa disso. Pois afinal, ele não sabia o que estava fazendo.
- Você nega e reprime o seu corpo? Então você nega o presente mais sagrado que a existência te deu. Você é o pior tipo de ingrato que pode existir.
- A sua espiritualidade te faz negar a vida material ou ela é a aceitação e afirmação máxima dessa vida?
- A sua espiritualidade ainda te faz desejar um "outro mundo" ou ela já te faz afirmar "esse mundo"?
- Já é Deus o fruto daquilo que você cria ou ainda é você que foi criado por Deus?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Caminhos para lugar nenhum

Estranho hoje é ver o nome do blog se chamar assim. Eu precisava disso anteriormente. Não dava mais para caminhar o caminho dos outros. Por isso precisei ver a vida sem nenhum caminho. Nada que era dos outros jamais me satisfez. A meditação no início me levou a esse ponto. O não-caminho. Me parecia que todos os caminhos de alguma forma eram caminhos que inevitavelmente me levariam de volta ao todo. Todos. As mulheres que eu amava, independente de quem eram, eram apenas caminhos de volta ao amor. Ao amor que flui em mim. Todos os caminhos eram caminhos. Não havia caminho pois todos eram caminhos. Tudo que eu fazia e tudo que acontecia eram apenas indicações de algo que eu tinha em algum lugar dentro de mim. Tudo era caminho para dentro de mim. E o que têm dentro de mim? Um eu? Ou um rio? Um rio chamado existência que flui sem cessar quando o eu some. Tudo de belo que eu já realizei nessa vida foi quando não havia um eu realizando. E foi então que vi que tudo já estava aqui. Tudo! Não havia caminho nenhum a ser seguido. Entretanto a meditação se aprofundou e algo me veio. Sim há um caminho. Existe uma estrada. Todos os caminhos levam a ela, isso ainda é verdade. Todo o universo é apenas uma desculpa para me mostrar algo em mim. Isso ainda é verdade. Porém, apesar de tudo ser desculpa, existem desculpas que são melhores do que outras. As mulheres são desculpas para me mostrar o amor que flui em mim. Porém existem desculpas que são muito melhores do que outras, e fazem o serviço de forma muito mais bela e eficaz do que outras. A existência é infinitamente sábia. E ela nos mostra a todo tempo caminhos que apesar de não serem o objetivo em si são maneiras de voltar ao todo. De voltar à existência. Não há caminhos ruins, todos são caminhos. Apenas acontece que alguns são melhores do que outros. Mas isso cada um tem que encontrar o seu. A relação de cada um com a existência é única. Ninguém pode caminhar pelo outro. Ninguém. A sua volta ao todo é uma relação única entre você e a existência. Só você pode saber o seu caminho. E só você pode caminhá-lo.

sábado, 9 de julho de 2011

Da liberdade

E lendo o Zaratustra do meu amigo Nietzsche me encontrei com a frase: "Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra? O teu olhar, porém, deve anunciar−se claramente:  livre, para quê?". Esse foi o insight que mais me tocou em toda minha vida a respeito da liberdade. Livre para quê? Essa é a pergunta que devem se fazer todos os amantes da liberdade. Não pensar nisso foi o erro de todas as revoluções. Estão realmente as pessoas prontas para serem livres? Tem elas destino suficiente em seus olhos que possam guiá-las quando estiverem livres? Tem elas bravura suficiente para serem donas de seus próprios valores e julgamentos? Ou ainda necessitam de alguém que as diga o que é certo e errado? Chame esse alguém do que quiser, Estado, lei, ética, senso-comum, espírito de luz, Deus, não importa, é tudo a mesma coisa. É tudo falta de destino no próprio olhar, falta de coragem de caminhar com os próprios pés, falta de capacidade de ser dono de si mesmo.
Liberdade é o único caminho possível da alma inquieta, do pássaro que anseia em voar livre, do humano que percebeu que chegou a hora de não mais depender do julgamento dos outros. Pois como é óbvio para qualquer alma com um olhar mais aguçado, os julgamentos dos outros não mostram nada de ruim a respeito do que está sendo julgado, eles apenas mostram a pequenez dos olhos de quem está julgando.
Liberdade eu vos digo, esse é o caminho da alma limpa. Porém caros amigos de olhar penetrante, lembrem-se de que essa liberdade é apenas para quem já está pronta para ela. Não sejam tiranos a ponto de tentar impô-la aos que ainda não poderiam com ela. Isso seria um crime muito maior do que quando eles te impõem a prisão. Eles não tem os olhos suficientemente abertos, eles não poderiam fazer diferente. Mas você caro amigo solitário. Você é abençoado em sua grandeza. Não goze dos prazeres baixos da tirania. Existem prazeres muito mais elevados aguardando pela sua vinda. Caro amigo de coração nobre, lute pela sua liberdade. Que ela seja uma conquista. Uma conquista sua. E jamais queira que a liberdade do outro seja também uma conquista sua. Liberdade cada um tem que conquistar a sua. Cada um tem a sua hora para ela.
Caro amigo de amor inesgotável. Compreenda que muitos ainda não estão prontos para ela. Seja bondoso com eles e permitam que ainda tenham os seus reis e os seus Deuses. Pois ainda necessitam deles. Não os condenem a serem livres enquanto ainda não tem condições de lidarem com a própria liberdade. Seja você uma alma liberta, derrame você no mundo a fragrância dos novos tempos, porém deixem que eles sigam os seus próprios caminhos. Deixe que eles tenham os seus próprios tempos. Nós também já tivemos os nossos. Não cabe a nós caminhar pelos outros. Siga o seu próprio caminho meu caro amigo de vigor incansável.

Trecho do Zaratustra de Nietzsche


Do Caminho do Criador

"Queres, meu irmão, isolar−te? Queres
procurar o caminho que te guia a ti
mesmo? Espera ainda um momento e
ouve−me.

"O que procura é um erro". Assim fala o
rebanho.

E tu pertenceste ao rebanho durante
muito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a voz
do rebanho. E tu pertenceste ao
rebanho durante muito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a voz
do rebanho. E quando disseres: "Já não
tenho uma consciência comum
convosco", isso será uma queixa e uma
dor.

Essa mesma dor é filha da consciência
comum, e a última centelha dessa
consciência ainda brilha na tua aflição.

Queres, no entanto, seguir o caminho
da tua aflição, que é o caminho para ti
mesmo? Demonstra−me o teu direito e
a tua força para isso!

Acaso és uma força nova e um novo
direito?

Um primeiro movimento? Uma roda que
gira sobre si mesma? Podes obrigar as
estrelas a girarem em tomo de ti?

Ai! Existe tanta ansiedade pelas alturas!

Há tantas convulsões de ambição!
Demonstra−me que não pertences ao
número dos cobiçosos nem dos
ambiciosos!

Ai! Existem tantos pensamentos
grandes que apenas fazem o mesmo
que um fole. Incham e esvaziam.

Chamas−te livre? Quero que me digas o
teu pensamento principal, e não que te
livraste de jugo.

Serás tu alguém que tenha o direito de
se livrar de um jugo? Há quem perca o
seu último valor ao libertar−se da sua
sujeição.

Livre de quê? Que importa isso a
Zaratustra? O teu olhar, porém, deve
anunciar−se claramente:
livre, para quê? Podes proporcionar a ti
mesmo teu bem e o teu mal, e
suspender a tua vontade por cima de ti
como uma lei? Podes ser o teu próprio
juiz e vingador da tua lei?

Terrível é estar a sós com o juiz e o
vingador da própria lei, como estrela
lançada ao espaço vazio no meio do
sopro gelado da soledade. Ainda hoje te
atormenta a multidão; ainda conservas o
teu valor e as tuas esperanças todas...
Um dia, contudo, te fatigará a soledade,
se abaterá o teu orgulho e cerrarás os
dentes. Um dia clamarás: "Estou só!"

Chegará um dia em que já não vejas a
tua altura, e em que a tua baixeza esteja
demasiado perto de ti. A tua própria
sublimidade te amedrontará como um
fantasma. Um dia gritarás: "Tudo é
falso!"

Há sentimentos que querem matar o
solitário. Não o conseguem? Pois eles
que morram! Mas serás tu capaz de ser
assassino?

Meu irmão, já conheces a palavra
"desprezo"? E o tormento da justiça de
ser justo para com os que te
menosprezam?

Obrigas muitos a mudarem de opinião a
teu respeito; por isso te consideram.
Abeiraste−te deles, e contudo, passaste
adiante; é coisa que te não perdoam.
Elevaste−te acima deles; mas quanto
mais alto sobes tanto mais baixo te vêm
os olhos da inveja. E ninguém é tão
odiado como o que voa.

"Como quereríeis ser justo para comigo!
− assim é que deves falar. − Eu destino
para mim a vossa injustiça, como lote
que me está destinado".

Injustiça e baixeza é o que eles arrojam
ao solitário; mas, meu irmão, se queres
ser uma estrela, nem por isso os hás de
iluminar menos.

E livra−te dos bons e dos justos!
Agrada−lhes crucificar os que invejam a
sua própria virtude: odeiam o solitário. E
livra−te ainda assim da santa
simplicidade!

A seus olhos não é santo o que é
simples, e apraz−lhe brincar com fogo...
das fogueiras.

E livra−te também dos impulsos do teu
amor! O solitário estende depressa
demais a mão a quem encontra.

Há homens a quem não deves dar a
mão, mas tão−somente a pata, e além
disso quero que a tua pata tenha garras.
O pior inimigo, todavia, que podes
encontrar, és tu mesmo; lança−te a ti
próprio nas cavernas e nos bosques.

Solitário, tu segues o caminho que te
conduz a ti mesmo! E o teu caminho
passa por diante de ti dos e dos teus
sete demônios.

Serás herege para ti mesmo serás
feiticeiro, adivinho doido incrédulo, ímpio
e malvado.

É mister que queiras consumir−te na tua
própria chama. Como quererias
renovar−te sem primeiro te reduzires a
cinzas?

Solitário, tu segues o caminho do
criador: queres tirar um deus dos teus
sete demônios!

Solitário, tu segues o caminho do
amante: amas−te a ti mesmo, e por isso
te desprezas, como só desprezam os
amantes.

O amante quer criar porque despreza!
Que saberia do amor aquele que não
devesse menosprezar justamente o que
amava?

Vai−te para o isolamento, meu irmão,
com o teu amor e com a tua criação, e
tarde será que a justiça te siga
claudicando.

Vai−te para o isolamento com as
minhas lágrimas, meu irmão. Eu amo o
que quer criar qualquer coisa superior a
si mesmo e dessa arte sucumbe".

Assim falou Zaratustra.

domingo, 3 de julho de 2011

Pensamentos do além


Amor

E o que dizer do amor? Todos falam sobre ele, não? No fundo não é o amor a base fundamental de quase todas a ideologias? Mas porque é então que se vê tanto ódio por todas as partes? Será que falar de amor cria ódio? Ou será que se fala de amor justamente porque se tem ódio? Após fazer sexo não se pensa em sexo. Só pensa em sexo quem não o pratica constantemente. É a ausência que trás o pensamento. É a falta que trás a busca. E é por isso que se fala tanto de amor. Se busca sempre aquilo que não se tem. Falar de amor já é um sinal da falta de amor. Quem se torna amor, quem transborda amor, esse nem toca no assunto, pois quando se é não é preciso pensar que se é. Nesse caso não há pensamentos, há um ser, não há palavras, há um acontecer.

Decepção

E quem foi que te decepcionou? Faz mesmo sentido essa pergunta? Só tem desilusão quem antes se iludiu. Assim dizem os anjos já a algum tempo. Não são os outros que te decepcionam, é você que deu importância demais a eles. Inclusive quando você se decepciona é porque você se deu importância demais. Mas agora cabe também a pergunta, porque é que gostamos tanto de criar ilusões a respeito de nossa grandeza? E ainda outra ainda mais importante, será que a nossa ilusão de grandeza não nos impede de enxergar a nossa própria grandeza? Pois normalmente isso é o que eu vejo, seres grandiosos com uma imensa ilusão de que são grandes, o que os tornam pequeninos. Mas há uma razão para isso. Voltaremos agora a primeira pergunta, porque é que criamos ilusões? Para se criar um sonho na Terra não é necessário tê-lo sonhado durante o sono antes? E como trazer a potencialidade divina que temos escondida em nós se de fato primeiramente não acreditarmos nela? Existe um tipo de ilusão, um tipo de fé, que mesmo que esteja equivocada, ela serve para nos mover adiante, serve para que tragamos algo para cá que ainda não está aqui. A parte dessa ilusão que não é real trará necessariamente desilusão no futuro. Mas como disse, ela é necessária. O melhor seria se iludir de brincadeira, sonhar acordado. Que os meus sonhos me tragam o que der pra trazer, e se deles nada acontecer então que se sonhe outros sonhos e que se siga adiante. Pois o importante de verdade não é realizar os sonhos, mas sim seguir adiante. Qualquer coisa que nos leve para frente, para além do que nós somos, é boa, mesmo que com ela venha dor e sofrimento. Não importa, faz parte do crescimento. Não somos seres prontos ainda, se permita crescer. Se permita ir adiante, ir além.

Brincadeira

O que é a vida senão uma grande piada? Uma piada sim, mas uma piada que merece ser levada a sério. Pois quem não entende a piada não ri. É preciso compreender a vida se quisermos rir dela. Eu vos digo com toda seguridade, a vida foi feita para se rir dela. Essa é a única razão dela existir. Porém, como disse, temos que compreendê-la, senão perdemos a piada e ficamos com a cara séria. É exatamente isso que acontece em muitos países desenvolvidos. As pessoas estão tão preocupadas com seus empregos que acabam se esquecendo da vida. Não que o emprego não seja parte da vida. Mas ele é parte e a parte não é o todo. Sempre que a parte, qualquer parte, vira todo, então se perde a vida, e aí se acaba ficando sério. Pois quem perde a vida perde a piada.

Compaixão

E o que dizer da compaixão? Compaixão te faz retornar ao todo. Te faz ser um novamente com o próximo e logo com toda a existência. Compaixão não é ter pena, não é dizer sim a tudo que os outros fazem. Inclusive muitas vezes significa dizer não, compaixão é ser o outro. Não é entender e nem aceitar o outro, é ser o outro. E ser o outro não trás nenhuma obrigação e nenhuma ética obrigatória para com a outra pessoa. Seremos a outra pessoa e isso por si só já é a maior benção que pode acontecer aos dois. Nessa fusão toda a existência entra em comunhão com os dois. E nisso um silêncio surge, e o amor nasce justamente desse segundo de silêncio. Compaixão não é perdão. Entre o que perdoa e o perdoado existem duas pessoas, na compaixão só existe uma. Ou melhor, desaparecem as duas e o que existe é só a existência. A prática da compaixão é de todas a melhor meditação. Aos poucos ela derruba a ilusão da separação, que no fundo é a única ilusão que existe da qual surgem todas as outras. Compaixão é o começo do caminho para a serenidade, do caminho de volta para a existência.

A respeito de ajudar os outros


  • Antes de ajudar a alguém deve-se sempre se fazer 3 perguntas: -A pessoa realmente precisa da minha ajuda? - Ela quer receber a minha ajuda? - Ela está pronta para receber a minha ajuda? O não em qualquer uma dessas respostas torna a "ajuda" na verdade em apenas mais um problema. A "ajuda-a-qualquer-custo" não passa de invasão, tortura e tentativa de domínio.
  • Se você quer realmente ajudar o mundo, então inevitavelmente terá que passar pelas 3 perguntas. Caso contrário, para o bem da própria humanidade, a sua ajuda é absolutamente dispensável.
  • Normalmente se quer ajudar os outros, se quer ser útil, apenas para se sentir alguém importante. Porém, na maioria das vezes as pessoas realmente ajudariam as outras se elas finalmente aceitassem a sua insignificância. Se elas aceitassem simplesmente que ninguém precisa delas. Essa seria a maior ajuda possível.
  • Por não querer aceitar que ninguém necessita de nós, passamos a criar e a ver problemas em todos os lugares. Fazemos isso apenas por um desejo de sentirmo-nos necessários. É apenas medo da insignificância. Os "salvadores do mundo" são o caso máximo desse medo.
  • Como eu já havia dito anteriormente: Porque é que as pessoas continuam achando que o mundo precisa ser salvo? Quando é que elas se darão conta de que são elas que precisam de problemas no mundo para que assim possam se tornar "salvadores"?
  • As vezes há também de se fazer uma quarta pergunta. Tenho eu capacidade de ajudá-lo? Apenas boa intenção muitas vezes não basta. É necessário capacidade também, senão a ajuda será apenas mais um problema.
  • Esses pensamentos são verdades não apenas a nível pessoal, mas como também a qualquer outro nível, inclusive a nível de nações.

domingo, 19 de junho de 2011

Aforismos de um fim de semana em Weimar


  1. Para termos força para seguirmos adiante ao invés de cair em um niilismo enlouquecedor as vezes é mais importante termos inimigos do que amigos. Além disso, é por termos inimigos que precisamos também de amigos. Para combatê-los. Como ter "camaradas" senão por causa de um inimigo em comum? Em resumo, temos inúmeros motivos para sermos gratos aos nossos inimigos. Eles nos dão estímulo, entusiasmo e amigos. Jesus talvez tenha de alguma forma percebido isso, e foi por isso que disse: "Amai aos vossos inimigos". Pois no fundo eles não te fazem tanto mal assim.
  2. A arte serve para nos mostrar o além. Para nos levar a um lugar que está além da realidade comum. Porém, quando se está no limiar de entrar nesse novo estado, o apego a arte pode se transformar em um empecilho. É como encontrar a ponte a uma nova terra e ficar preso admirando apenas a ponte. Por mais que a ponte seja bela e necessária, o apego a ela fora da hora impedirá a pessoa de ver a beleza infinitamente maior que a espera na nova terra. É muito comum no comportamento humano se apegar ao que deveria ser temporário. É muito comum fazer do meio um fim em si mesmo.
  3. Tentamos nos tornar grandes e importantes inclusive através do sentimento de culpa. Muitas vezes nos culpamos imensamente por coisas simplesmente porque queremos ser importantes, pois queremos de alguma forma achar que tivemos alguma influência em tal acontecimento. Para isso usamos a culpa, pois do contrário, sem o sentimento de culpa nos tornamos insignificantes em relação ao que aconteceu. E o ser humano não teme a nada mais do que teme a sua própria insignificância. É melhor se sentir culpado do que insignificante.
  4. Tentar se fazer responsável por algo de bom que aconteceu, ou então culpado por algo ruim que ocorreu é absolutamente o mesmo ato. Vem da mesma energia, do mesmo desejo em evitar a própria insignificância.
  5. Não seriam também os sentimentos frutos de uma fisiologia da alma, assim como as sensações são frutos da fisiologia do corpo?
  6. Você deseja seguir um caminho espiritual? Então comece pelo corpo, pois ele é a base fundamental de toda espiritualidade.
  7. Você quer buscar a divindade perdida que está dentro de você? Então comece buscando a sua humanidade, pois é exatamente a sua humanidade que o torna divino.
  8. Tenho visto ateístas que são infinitamente mais espiritualizados do que os seguidores dos caminhos que levam ao espírito. E há uma razão muito simples para isso. Normalmente não se dá muita atenção para aquilo que já conquistamos anteriormente, para aquilo que já superamos anteriormente, apenas o usamos naturalmente em nossos atos, sem sequer que tenhamos que pensar sobre o assunto. Já é parte de nosso ser, o que é exatamente o caso de muitos ateístas em relação a sua espiritualidade. Além disso, normalmente se busca apenas aquilo que ainda não se tem, e exatamente essa é a situação de muitos dos buscadores do espírito, buscam aquilo que não tem. E quando criticam ateístas muitas vezes criticam quem estão muito a sua frente, com os quais poderiam ainda muito aprender.

sábado, 18 de junho de 2011

O recado dos Deuses


E foi então que ainda pensando sobre guerra e paz me veio um minuto de clarividência. Estava deitado na grama meditando em baixo de uma árvore e eis que o vento me trouxe a boa nova. Era um pouco da sabedoria celeste que os Deuses as vezes gostam de derramar sobre a Terra. E a mensagem era a seguinte: "Enquanto ainda houver guerra em seu coração, em sua alma, então lute. Lute, só que dessa vez lute pelos outros, e não mais contra os outros."
E assim o vento foi embora, deixando para trás apenas um silencioso rastro de paz e harmonia. O problema estava resolvido. A alma guerreira que anseia pela batalha, tem agora o caminho para fazê-lo criando harmonia e não mais destruindo e tornando feio o que vê pela frente. Que agora a guerra seja a boa guerra.

A mudança


O incrível é perceber que buda sempre esteve certo. Sobre tudo que ele disse ele estava certo. Tudo. Eu tentei ir contra ele de todas as maneiras possíveis. Tentei acreditar que ter amigos era importante, até que finalmente os meus amigos começaram a precisar de mim e a me aprisionarem em seus mundos de todas as maneiras possíveis. Era impossível seguir a minha vida enquanto estivesse preso a eles. E o mesmo serve para a família. E foi então que percebi também que os meus inimigos, aqueles que eu culpava por tornarem minha vida miserável de todas as formas possíveis e dos quais não conseguia me livrar de jeito nenhum por causa de um carma ou de alguma outra coisa dessa ordem, vi que eles foram os que mais me ajudaram a crescer e a me tornar maduro. Foram eles que me mostraram o que eu odiava em mim, o que eu precisava superar em mim, o que eu precisava ainda amar em mim. Esses malditos foram sempre um incetivo, mesmo que doloroso, para que eu pudesse seguir em frente. E a vida não é nada senão um eterno seguir em frente. As ideias de "objetivo da vida" não são nada além de desculpas para nos fazer caminhar. Para nos fazer mover juntamente com a vida. Pois a vida não é nada além de mudança e movimento. Vi então que meus amigos me faziam ficar parado e que meus inimigos me faziam mover, crescer, e porque não florescer? O que eu queria agora então, paz ou guerra? Já não sabia. Os pacifistas têm que seriamente se perguntar, está a humanidade realmente pronta para suportar a paz? Para não cair no niilismo enlouquecedor da falta de algo que os mova adiante? Essa é a pergunta que você tem que se fazer, você quer a paz mas você está mesmo pronto para suportá-la?
Foi quando minha mente simplesmente começou a não poder me dar mais resposta nenhuma. Não me sentia bem na guerra, estava cansado. E não me sentia bem na paz, estava parado e entediado. Tentava pensar para encontrar uma maldita solução, pois parecia que nada dava jeito. E sobre outras coisas estava no mesmo dilema. Ser livre para me relacionar com quem eu quiser a hora que eu quiser ou me arriscar novamente em uma monogamia? A mente só me deixava maluco, pois quando eu pensava nisso nenhuma das opções parecia me satisfazer. Largar tudo e virar um maldito hippie, ou seguir a vida universitária para conseguir um bom emprego? Eu pensava e pensava e nada funcionava. Não queria nenhum deles. Viver ou morrer? Que diferença isso fazia?
Pensar, pensar, pensar, não adiantava. Só piorava. Mas foi então que o milagre veio. Foi então que não houve outra opção a não ser parar de perguntar coisas para mente. Foi a única maneira que encontrei de sobreviver. A mente não conseguia mais me dar resposta nenhuma que me servisse para nada. E então veio a meditação. E com ela o milagre. Buda estava certo. Não adianta responder as perguntas, pois o problema não está na resposta, mas sim na existência da pergunta. É a existência dela que não te deixa em paz. E então elas começaram a se silenciar pouco a pouco. E continuam indo em embora. E com elas muito lixo vai embora. Tudo que me impedia de viver a vida plenamente tem ido embora. Amigos, inimigos, família, emprego, estudos, sonhos, passado, futuro, tudo tem desaparecido. E com isso uma qualidade nova tem surgido. Um silêncio sereno. Uma paz que é infinitamente mais forte e mais bela do que qualquer uma de minhas loucuras. Agora ambas as respostas me satisfazem, qualquer resposta me satisfaz. Posso viver qualquer uma delas, essa já não é mais a questão, isso já não mais interessa. É a vida que vem surgindo. Sou eu que estou surgindo. Não mais alguém com resposta nenhuma a respeito de nada. Alguém limpo. Uma criança novamente. Buda esteve sempre certo.

domingo, 24 de abril de 2011

Os versos de ouro - Pitágoras


Honra, em primeiro lugar, e venera os deuses imortais,
a cada um de acordo com sua classe.
Respeita logo o juramento, e reverencia os heróis ilustres,
e também aos gênios subterrâneos:
cumprirás assim o que as leis mandam.
Honra logo a teus pais e a teus parentes de sangue.
E dos demais, faça-te amigo do que se sobressai em virtude.

Cede às palavras gentis e não te ponhas aos atos proveitosos.
Não guardes rancor ao amigo por uma falta leve.

Estas coisas, faça-as na medida de tuas forças,
pois o possível se encontra junto ao necessário.

Compenetra-te em cumprir estos preceitos,
mas atine-se a dominar
antes de tudo as necessidades de teu estômago e teu sono,
depois arranque-os de teus apetites e de tua ira.

Não cometas nunca uma ação vergonhosa,
Nem com ninguém, nem a sós

Acima de tudo, respeita-te a ti mesmo.

Seguidamente exercita-te em praticar a justiça, em palavras e em obras,
Aprende a não comportar-te sem razão jamais.

Sabendo que morrer é a lei fatal para todos,
que as riquezas, umas vezes te cabe ganhá-las e outras, perde-las.

Dos sofrimentos que cabem aos mortais por divino desígnio,
a parte que a ti corresponde, suporta-a sem indignação;
mas é legítimo que busques remédio na medida de tuas forças;
porque não são tantas as desgraças que caem sobre os homens bons.

Muitas são as vozes, umas indignas, outras nobres, que vem a ferir o ouvido:

Que não te perturbem, nem tampouco te voltes para ouvi-las.

Quando ouvires uma mentira, suporta com calma.

Mas o que agora vou te dizer
é preciso que cumpras sempre:
Que ninguém, por seu ditos ou por seus atos
te comova para que faças ou digas nada que não seja o melhor para ti.

Reflete antes de obrar para não cometer tolices:
Obrar e falar sem discernimento é de pobres gentes.
Tu, por tua vez, farás sempre o que não possa danar-te.


Não entres em assuntos que ignoras,
mas aprende o que é necessário:
tal é a norma de uma vida agradável.

Tampouco descuides de tua saúde:

Tem moderação no comer e no beber,
e no exercício do corpo.
Por moderação entendo o que não te faça dano.
Acostuma-te a uma vida saudável, sem frouxidão,

E guarda-te do que possa atrair a inveja.

Não sejas dissipado em teus gastos

Como fazem os que ignoram o que é honradez,
mas não por eles deixes de ser generoso:
nada há melhor que o equilíbrio em todas as coisas

Faz pois o que não te prejudica, e reflete antes de atuar.
E não deixes que o doce sonho se apodere de teus languidos olhos
sem antes haver repassado o que fizeste durante o dia:
"No que falei? O que fiz? Que dever deixei de cumprir?"
Começa do principio e percorre-o todo,
e reprova-te os erros e alegra-te com os acertos.

Isto é o que deves fazer.
Estas coisas que há de empenhar-te em praticar,
Estas coisas há que amar.
Por elas ingressarás na divina senda da perfeição.
Por quem transmitiu a nosso entendimento a Tetratkis (1)

fonte da perene natureza.

Adiante, pois! Ponha-te ao trabalho,
não sem antes rogar aos deuses para que te conduzam à perfeição.
Se observares estas coisas
conhecerás a ordem que reina entre os deuses imortais e os homens mortais,
em que se separam as coisas e em que se unem.

E saberás. Como é justo, que a natureza é uma e a mesma em todas as partes,
para que não esperar o que não há que esperar,
nem nada fique oculto a teus olhos.


Conhecerás os homens,
vítimas dos males que eles mesmos se impõem,
cegos aos bens que lhes rodeiam, que não ouvem nem veem:
são poucos os que sabem livrar-se da desgraça.
Tal é o destino que estorva o espírito dos mortais,
como contas infantis rodam de um lado a outro,
oprimidos por males inumeráveis:
porque sem adverti-lo os castiga a Discórdia,
sua natural e triste companheira,
a que não há que provocar, sem ceder-lhe o passo e fugir dela.

Oh pai Zeus! De quantos males não livrarias os homens
se tão somente os fizesse ver a que demônio obedecem!

Mas para ti, tem confiança,
porque de uma divina raça estão feitos os seres humanos,
e há também a sagrada natureza que lhes mostra e lhes descobre todas as coisas.
De tudo o qual, se tomas o que te pertence,
observarás meus mandamentos,
que serão teu remédio e livrarão tua alma de tais males.

Abstenha-te dos alimentos como dissemos,
seja para as purificações, seja para a liberação da alma,
julga e reflete de todas as coisas e de cada uma,
alçando alto tua mente, que é o melhor de teus guias.

Se descuidas teu corpo para voar até as livres orbes do éter,
serás um deus imortal, incorruptível,
já não sujeito à morte.

.

(1) Tetraktys. Número sagrado e fundamental dos pitagóricos pelo qual juravam fidelidade. Simboliza a unidade origem e principio, a dualidade das oposicoes e as complementaridades e o triunfo da trindade, que finalmente se desprende no universo do quatro. 1 + 2 + 3 + 4 = 10, a unidade expandida na manifestação, = 1 + 0 = 1, o retorno à unidade de origem.

E então veio a primavera ...


E então veio a primavera. Finalmente o domingo de páscoa. O dia do renascimento. Mas agora não apenas o renascer de Jesus Cristo. Ele fez o que pôde. Ele defendeu os fracos e os oprimidos. E certamente há de ser muito forte para o fazê-lo. Porém não já não era o suficiente. Havia também um dia alguém de vir para defender os fortes e opressores. E eis que Nietzsche veio ao mundo. Não havia outro jeito, alguém precisava agora abençoar o mal para poder em fim criar a paz, a redenção, para criar o ser humano que será um ser total. Um humano não negador da vida, mas um humano onde o bem e o mal estejam juntos de mão dadas se amando incondicionalmente. Será o fim da guerra contra si mesmo. Não será também esse o final da guerra contra os outros? Almas negras e brancas finalmente dançando juntas a dança do novo amanhecer. Apenas um! Agora seremos apenas um! Eis o grito que o novo tempo traz para finalmente criar serenidade.
Jesus e Nietzsche foram dois opostos. Foram duas metades. Foram dois irmãos. Jesus mostrou a beleza que havia em uma metade da vida, e Nietzsche mostrou a beleza que havia na metade oposta. Mas agora é um novo renascer. Um renascer sem metades. Um renascer sem separação. Agora é a hora de ver beleza em todas as partes. O tempo chegou trazendo novos ares. Jesus sem Nietzsche não tem leveza suficiente para ver bondade na opressão, e Nietzsche sem Jesus não tem força suficiente para ver beleza e dança naquilo que é simples. Consolo sem esclarecimento apenas perpetua o sofrimento, e esclarecimento sem consolo não traz nenhum tipo de paz. Jesus sem Nietzsche e Nietzsche sem Jesus não podem trazer a nova música do amanhã. A canção da nova primavera. A explosão do novo renascer.
Foi-se o tempo do belo Jesus Cristo, e depois foi-se também a época do grande Friedrich Nietzsche. O mundo precisou de ambos. Mas agora é uma nova época. O grande dia onde ambos estarão juntos abraçados dançando e espalhando a nova fragrância do ser humano total. O fim da guerra. Chegou o tempo da reconciliação. Chegou o tempo do novo renascer. Eu já escuto o seu cantar nas flores que estão brotando. Já não há como deter a nova primavera.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Quando o louco começa a falar ...


Era mais um dia comum em que eu caminhava aleatoriamente pelas ruas de um subúrbio de Londres. As mesmas caminhadas na tentativa de esvaziar a mente. De apagar o barulho que insistia em não fazer paz com o meu silêncio. Já não queria mais receber mensagens me esclarecendo o significado da vida, queria apenas que as perguntas não estivessem mais lá. Não estava mais em busca da verdade. Ela nunca me adiantou de nada. Nenhuma verdade jamais trouxe nenhum tipo de paz ao meu coração. Queria ser agora o mais burro. O que menos entende a vida. Talvez assim eu comece finalmente a vivê-la. Queria deixar ao futuro apenas a inocência do vir-a-ser. Que ele me traga o que ele quiser. Essa escolha não é minha. E que escolha algum dia já foi minha? As minhas explicações para os meus próprios atos se mostraram sempre falsas. Fui eu ou foi a vida que me trouxe até aqui? E porque eu insisto em separar "eu" e "vida"? Quem criou essa ridícula separação? Nenhuma dessas perguntas faz nenhum sentido. O quê? Finalmente o sentido está desaparecendo? E por que buscar sentido algum? Razão para que? Não quero ter mais nenhum pingo de razão em nenhum dos meus atos. "Causa e efeito", que mentira mais absurda. Quem é causa e quem é efeito? Será que não é a causa que só existe por causa do efeito? E quem foi louco o suficiente para separar esses dois atos iguais? Quem foi o louco que inventou a separação? Quem separou o assassino do assassinado? Quem separou o amante do amado? Como separar o que é igual? Como separar o que pertence ao todo? O todo não vê nenhuma parte. Não há partes no todo. Não há separações. Não há eu e a vida, o que há é um eu-vida. Não há choro e risos. Quem não chora também não consegue rir. Pois é tudo a mesma coisa. Eu e você. Porque dois nomes? O indivíduo e a sociedade. Não, seus loucos! Não há partes. Não somos partes! Não temos partes. Como pode alguém dizer: "Eu não gosto dessa parte em mim."? Você não tem partes. Você é um todo. E continuam dizendo: "Tenho que melhorar esse meu lado". Não, não há lados. Você é um todo. O líder só existe porque existem seguidores, assim como os seguidores só existem porque existe um líder. Não veem vocês que não existe efeito sem causa assim como não há causa sem efeito? Quem veio antes? Não há antes. Eles vieram juntos. Eles estão juntos. Um cria o outro. A separação cria os dois ao mesmo tempo. Deus ou a humanidade? Que pergunta mais besta. Um não pode existir sem o outro. A humanidade é também causa de Deus. Foi a separação que criou um Deus. O Deus é a nossa vontade de voltar ao todo. No todo não há partes. Não há eu, não há vida, não há Deus, não há nada. E assim há tudo. Tudo! Eu, você, o louco, o buda, o guerrilheiro, o racista, o cientista, o mentiroso, o materialista, o espiritualista, o poeta, o animal, o vegetal, o sábio, o poderoso, o zé-ninguém, o doente, o criminoso, o santo, Jesus, o diabo. Nós somos o todo. Nenhum desses é parte. Somos o todo.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

E finalmente ... amor


-Então me diga nobre cavalheiro. Do que falaremos hoje?
-Você ainda não percebeu? Não está sentindo esse aroma que está aqui no ar agora?
-Eu percebi que havia algo diferente. Mas tive medo de acreditar que havia chegado a hora.
-Porém a hora chegou meu caro amigo. Hoje finalmente falaremos sobre o amor.
-Mas porque exatamente sobre o amor?
-Porque eu já cansei de falar sobre todo o resto.
-Não é possível. Logo você que gosta tanto de seus discursos sobre os humanos, revoluções, o universo, sobre a vida.
-Desculpe se o meu atual estado te perturba meu caro amigo. Acontece que chegou a hora. Será que você não consegue entender isso? Tudo que veio antes foi uma preparação. Foi um treino.
-Como assim?
-Revoluções? Revolucionar o quê? Como pode alguém depois de uma bela noite de amor pensar em querer mudar alguma coisa? E que tipo de revolução poderia ser mais bela do que uma linda noite de amor?
-Há algo muito diferente em você hoje.
-Sim, eu já te disse que chegou a hora. Hoje eu falarei sobre o amor.
-Eu já tive medo de suas palavras antes, mas nunca como hoje.
-Não há problema meu caro amigo. As pessoas temem o amor. Eu sempre temi o amor. Por isso que eu precisava sempre estar falando sobre guerras e sobre outras insanidades. Eu poderia falar sobre essas coisas durante a vida inteira. Durante muitas vidas inclusive se esse fosse o caso. Mas o que eu posso fazer hoje? Finalmente chegou a hora.
-E como você sabe que chegou a hora?
-Será que você não consegue ver?
-Ver o que?
-Que ela esteve aqui.
-Ela quem?
-Ela!
-Mas não poderia ter sido outra?
-Caro amigo, a vida não conhece "poderias". A vida simplesmente é o que ela é. E foi ela quem esteve aqui, e não outra.
-Mas o que você viu nela?
-Você ainda não entendeu. O que eu vi não foi nela, foi ela.
-Mas o que ela fez?
-Não foi o que ela fez, foi o que ela é.
-Então me diga, quem ela é?
-E como poderia eu responder a uma pergunta dessas? Como colocar em palavras o que nem mesmo os sentimentos mais transcendentes de meu coração conseguem entender direito?
-Mas porquê você a ama?
-Meu querido amigo, o amor não vem do conhecimento, não vem da compreensão. A mente nunca será capaz de amar. O amor vem de outro lugar. Ele vem do desconhecido. Ele vem da aventura do viver sem saber. Eu não faço ideia do porque a amo. Apenas sei que a amo.
-Você está louco! Por acaso você já parou para pensar no que você está falando?
-E como pensar sobre o que eu estou falando? O amor vem da vida. Ele vem do todo. Ele é muito maior do que o que eu posso compreender. Eu sou apenas uma parte. E como pode a parte querer entender o todo? O todo é muito maior. O todo é o todo.
-Não entendo nada do que você está falando.
-Não há problema algum. Eu tampouco o entendo.
-Mas então porque você fala?
-Por acaso já não te falei que hoje finalmente chegou a hora? A hora de falar sobre o amor? E como poderia eu falar sobre o amor, experimentar o que é o amor, se ainda houvesse dentro de mim algum desejo em compreender alguma coisa?
-Devo confessar que há beleza nisso que você diz.
-Eis a vida daquele que se liberta do desejo da verdade, do desejo do saber, do desejo de estar certo. Quando desaparece a busca pela verdade, pela compreensão do que é a vida, então a única coisa que resta é a própria vida. E o que é a vida senão apenas amor? E onde mais poderia haver algum tipo de beleza senão no amor?
-Não te entendo, mas gosto do que você me diz.
-Esse é o caminho meu caro amigo.
-Há amor nas suas palavras.
-Não posso evitar. Pois como eu te disse. Hoje finalmente chegou o dia. O dia de falar sobre o amor.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O menino que escrevia


Certa vez houve um menino que gostava de escrever. No começo ele não entendia direito porque fazia aquilo. Mas sim ele gostava. Aquilo o fazia muito bem. Escrever o levava para algum lugar onde ele se sentia bem. Um lugar que no início parecia ser fora da realidade. E talvez até fosse, mas era exatamente o que ele precisava. Para entender e conviver com a realidade é necessário muitas vezes sair um pouco dela. É necessário olhar de longe, de um lugar onde o peso de existir não seja um problema.
Alguns falavam que ele escrevia simplesmente por desabafo. Mas o que acontece com quem guarda suas angustias para si? Ele precisava se livrar de muita coisa. Haviam muitas coisas nele que no fundo não eram dele, estavam lá apenas emprestado. E tudo que se pega emprestado uma hora a gente acaba tendo que devolver.
E ele crescia e a necessidade de escrever ia cada vez aumentando mais e mais. A vida havia começado a parecer coisa de gente grande, e obviamente isso o assustava imensamente. Havia algo nele que sabia que esse tipo de vida que as pessoas levavam não era uma vida para ele. Ele precisava de algo mais. Ele precisava de algo além. A vida tinha que ser mais. E foi então que o lápis e o papel ficaram ainda mais e mais importantes. Quem sabe através daqueles incontáveis textos a vida não teria uma maneira de em algum lugar mandar alguma mensagem escondida?
E a escrita continuou e continuou. Gritos de ódio, palavras de amor, choros solitários, gargalhadas de alegria. Não havia outro jeito. A vida trazia todas essas coisas para ele. E o que ele poderia fazer contra a vida? Com o seu lápis na mão ele era capaz de lutar contra tudo e contra todos. Inclusive contra o próprio Deus. Mas nunca contra a vida. Isso ele no fundo nunca negou. Por mais que ele quisesse fugir por algum tempo, aquelas fugas eram no fundo apenas para recuperar o fôlego.
E foi então que algumas pessoas começaram a perceber que o que ele escrevia na verdade era até interessante. Era ainda um menino tentando se encontrar, mas ali alguns já começaram a ver que brotava uma semente de algo diferente. De algo que nem mesmo eles entendiam muito bem o que era. Algo que inclusive muitos temiam por não saber qual seria o fim daquilo tudo. Mas ele não se preocupava muito com essas coisas de fim, pois mesmo naquela época ele já sabia que a vida nunca coloca fim a nada, ela sempre continua. Ela muda, assume outra forma, outro gosto, outra cor, mas sempre continua de algum jeito.
Os seus textos começaram então a ficar mais profundos, mais gostosos, mais ardentes, mais poéticos algumas vezes, mais insanos, mais perigosos. A medida em que ele avançava na vida, as suas verdades ficam cada vez mais intensas, mais fortes. E foi então que ele percebeu que havia algo nele que ele poderia compartilhar com o mundo. Havia algo nele louco para ser compartilhado com o mundo. A vida queria gritar através dele. E mesmo em seus momentos de insanidade a vida mesmo assim ainda queria gritar através dele, pois quem disse que a vida não possui lindas loucuras dignas de serem compartilhadas?
Agora ele já não podia mais parar com aquilo. Era mais forte do que ele. Agora o escrever era parte de sua alma. Parte do seu próprio desejo de viver. Essa era sua arte. Essa era sua inspiração. Agora cada vez que escrevia se sentia mais perto da existência. Mais perto de si mesmo. E estranhamente até mesmo mais perto das pessoas. Mais perto da humanidade. Escrever era ao mesmo tempo um refúgio da realidade nos momentos difíceis e a maneira mais fácil de retornar a ela em momentos de calmaria. Sem a escrita a vida não tinha tanta cor. Escrever alimentava a alma. E quem disse que só o corpo necessita de alimento?
Uns diziam que ele queria agora criar uma nova crença. Trazer uma ideia nova. Ter os seus próprios seguidores. Mas ele nunca ligou muito para isso. No fundo ele nunca escreveu para ninguém além dele mesmo. Ele nunca escreveu para mudar o mundo. Talvez tenha o feito no início, mas que menino quando jovem não sonha em mudar o mundo? Ele se divertia escrevendo, ele ria escrevendo, ele chorava escrevendo. O seu escrever não tinha um propósito fixo, cada dia era por uma razão diferente. E na maioria das vezes até mesmo não havia razão nenhuma. Escrever era viver. Era esquecer da vida, era lembrar da vida. Era entender a vida para descobrir depois que a vida não podia ser entendida. E ele escrevia, escrevia e escrevia ... Para onde será que ele ia? Para onde será que o escrever o estava levando? Ele ainda não sabia, e nem mesmo se importava tanto assim, ele continuou simplesmente fazendo o que ele sempre fazia, ele escrevia, escrevia e escrevia ...

terça-feira, 15 de março de 2011

O dia da grande festa

Era uma noite solitária no alto de uma montanha. Uma brisa leve e suave soprava no meu rosto. Os gritos que normalmente vinham do mundo lá em baixo estavam estranhamente quietos. Havia uma paz no ar que não costumava estar ali. A tranquilidade do alto da montanha costumava vir sempre de cima, mas naquela dia ela estava vindo também de baixo. O que era aquilo? Seria finalmente o grande dia? O grande meio-dia? Eu não esperava por aquilo. Nunca havia experimentado nada igual. Não daquele jeito. Onde foi parar a guerra que até ontem insistia em permanecer na minha alma? Será que o topo da montanha estava agora acessível às pessoas do mundo? Será que agora finalmente era hora de receber os meus convidados, o meu povo? Nunca achei que fosse realmente possível.
Primeiro veio o Rei me visitar, e com ele veio o seu escravo. Mas havia algo de diferente nos dois. O escravo havia entendido o peso que era para o Rei ter que governar a alguém. Havia percebido que não apenas ele era vítima do Rei, mas como também o Rei era vítima dele. Com isso o Rei se libertou do governar, e o escravo se libertou do ser governado. Ambos estavam livres para subir a montanha.
Logo após veio o padre, e com ele vinha o ateu. O padre sorria e festejava, pois havia finalmente se libertado da crença em um Deus. Estava agora livre para mergulhar na vida e experimentar o que quer que ela trouxesse sem nenhuma ideia prévia de como que a vida deveria ser. Sentia pela primeira vez como uma criança o gosto do que significava a palavra viver. Estranhamente quando o padre se libertou de Deus então o ateu pôde pela primeira vez experimentar a divindade escondida nos ventos que a vida trazia. Quando o padre desapareceu então o ateu festejou, pois agora ele podia em paz se encontrar com o sopro do divino que há muito tempo batia à sua porta. Os dois se abraçavam e cantavam em um gozo quase infinito por tamanho prazer em experimentar tal liberdade. Estavam prontos para subir até o topo da minha montanha.
E as pessoas não paravam de subir. Elas vinham de todos os cantos. Uma enorme festa estava tomando forma. Inclusive as estrelas no céu haviam percebido e naquela noite brilhavam com uma intensidade nunca vista antes. Era como se a lua chorasse por jamais ter visto tão bela cena. A própria noite não parecia mais noite. Não se sabia se era noite ou se era dia. Ambos pareciam iguais naquele momento.
E nisso veio o guerreiro e o pacifista. O guerreiro havia percebido que a suas guerras no fundo eram apenas para descarregar a guerra que ele carregava dentro de si mesmo, e o pacifista percebeu que exigir paz de um guerreiro era uma violência tão grande quanto a própria guerra.
Atrás deles vinham o fascista e o anarquista. O fascista agora entendia que seu ódio à liberdade individual, que o seu ódio ao anarquista, nada mais era do que ódio que tinha por si mesmo por não se permitir gozar a vida da maneira que sua alma pedia, e o anarquista entendeu que o seu ódio ao fascista nada mais era do que o ódio que tinha pelo seu fascista interior que insistia em controlar aos outros e a si mesmo através de uma moral da liberdade.
E assim veio o belo e o feio, o bom e o mal, o forte e o fraco, o preguiçoso e o trabalhador, o inteligente e o burro, o pobre e o rico, Deus e o Diabo. Todos vinham abraçados por terem percebido que o combate que travavam entre si nunca havia de fato sido entre si, mas sempre contra si mesmos. O que não aceitavam no outro, no fundo era algo que não aceitavam em si mesmos. Quando um se libertou então o seu oposto, o seu irmão, o seu igual, também se libertou, se tornaram um só, e com isso estavam agora leves o suficiente para subir ao topo da montanha.
Foi então que raios de sol começaram a surgir entre as estrelas. A noite estava já ensolarada. O ar que nos envolvia estava diferente. E foi nesse momento que levei a maior surpresa de minha vida. A montanha na qual vivia já não me parecia mais tão alta, e o mundo lá em baixo na realidade não estava mais "lá embaixo". Foi então que eu também percebi algo. A montanha nunca havia de fato existido. Nós sempre havíamos sido iguais. E com isso agora era eu que estava leve o bastante para me juntar as pessoas do mundo e finalmente celebrar com eles a nossa festa. A grande festa.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Discurso sobre a crueldade e algo mais


Qual é o problema em se ser cruel? Não vejo resposta nenhuma que seja digna de uma alma elevada. Esperar dos outros e de si mesmo apenas bondade e caridade não é também uma forma de crueldade? uma forma de ser contrário a vida? de ser contrário a Deus?
O Diabo não existe separadamente de Deus. Eles são duas partes de uma única coisa. A guerra entre céu e inferno só existirá enquanto existir a separação entre Deus e o Diabo. O dia em que eles se tornarem um só, o dia em que eles deixarem ambos de ser bebês chorões e acordarem para a vida, para a realidade de que eles são irmãos muito próximos, quase gêmeos, aí então toda essa maluquice de corpo e espírito desaparecerá.
Espiritualidade é o nome que se dá para a covardia daquele que quer fugir da vida. Espiritualidade nada mais é do que um profundo desejo de se cometer suicídio. A vida não impõe separação nenhuma. Quem quiser ser digno da vida terá que se encontrar com ela cara a cara. E não fugir dela.
Se a vida te traz violência e crueldade é para que você veja o que você tem dentro de si e que você esconde de si mesmo no fundo de sua alma. As maiores atrocidades já cometidas até hoje não foram sempre cometidas em nome do amor ao próximo? Em nome de um Deus de amor infinito? Em realidade, pode existir violência maior do que achar que o próximo precisa do seu amor? Ou melhor dizendo, pode existir violência maior do que achar que isso que você chama de amor seja digno de alguma coisa?
No fundo, o que é isso que você chama de amor senão medo, insegurança e covardia? Medo de ser odiado. Insegurança por temer descobrir que você não vale nada para ninguém, já que você não vale nada para si mesmo. Covardia de assumir ser quem você realmente é.
Geralmente se esconde tudo aquilo que a moral nega, e esse é o maior dos crimes contra a vida. Pois quase sempre, aquilo que rejeitamos em nós mesmos é justamente o que nos tornaria almas mais nobres, seres mais dignos da vida. O que você menos aceita em si mesmo, normalmente é o que de melhor há em você.

Trechos de Crepúsculo dos Ídolos de Friedrich Nietzsche


Erro da vontade livre.
- Hoje já não temos mais nenhuma compaixão pelo conceito de "vontade livre": sabemos muito bem o que ele é - o mais suspeito artifício dos teólogos que existe; um artifício que tem por objetivo fazer com que a humanidade se torne "responsável" à moda dos teólogos, isto é, que visa fazer com que a humanidade seja dependente deles... Eu ofereço aqui apenas a psicologia de toda e qualquer atribuição de responsabilidade. - Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma estar em ação o instinto de querer punir e julgar. Despiu-se o vir-a-ser de sua inocência, quando se reconduziram os diversos modos de ser à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade. A doutrina da vontade é inventada essencialmente em função das punições, isto é, em função do querer-estabelecer-a-culpa. Toda a psicologia antiga, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes no topo das comunidades antigas, queriam criar para si um direito de infligir penas - ou queriam ao menos criar um direito para que Deus o fizesse... Os homens foram pensados como "livres", para que pudessem ser julgados e punidos - para que pudessem ser culpados. Conseqüentemente, toda ação precisaria ser considerada como desejada, a origem de toda ação como estando situada na consciência (- com o que a mais fundamental fabricação de moedas falsas transformou-se, no interior do psicologicismo, em princípio da própria psicologia...). Hoje, quando adentramos o movimento inverso, quando nós imoralistas buscamos novamente com toda força sobretudo retirar do mundo o conceito de culpa e o conceito de punição, purificando destes conceitos a psicologia, a história, a natureza, as instituições e as sanções comunitárias, não há em nossos olhos nenhum antagonismo mais radical do que o em relação aos teólogos que continuam a infectar a inocência do vir-a-ser com as noções de “punição” e "culpa", a partir do conceito de "ordem moral do mundo". O cristianismo é uma metafísica de carrasco...


Qual pode ser nossa única doutrina?
- Que ninguém dá ao homem suas propriedades; nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele mesmo (- o contra-senso da representação, aqui por fim recusada, é ensinado por Kant, e talvez mesmo já por Platão, como "liberdade inteligível"). Ninguém é responsável em geral por ele existir, por ele ser constituído de tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias, nesta ambiência. A fatalidade de sua existência não pode ser separada da fatalidade de tudo o que foi e de tudo o que será. O homem não é a conseqüência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita a tentativa de alcançar um "ideal de homem" ou um "ideal de felicidade" ou um "ideal de moralidade". - É absurdo querer fazer rolar sua existência em direção a uma finalidade qualquer. Nós inventamos o conceito de "finalidade": na realidade falta a finalidade... É-se necessariamente, se é um pedaço de fatalidade, se pertence ao todo, se está no todo. Não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo! Que ninguém mais seja responsável, que o modo de ser não possa ser reconduzido a uma causa prima, que o mundo não seja uma unidade nem enquanto mundo sensível, nem enquanto "espírito": só isso é a grande libertação. - Com isso a inocência do vir-a-ser é restabelecida... O conceito de "Deus" foi até aqui a maior objeção contra a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em Deus: somente com isso redimimos o mundo.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Expectativas


O que as pessoas esperam de você é problema delas e não seu. Se elas sofrem por isso, é culpa apenas delas e não sua. Por acaso foi você que pediu que eles ficassem colocando expectativas nas suas costas? Se o outro não age de acordo com o que você espera dele e você fica decepcionado, então saiba que a culpa da decepção é apenas sua. Você que criou fantasias de como os outros deveriam ser. São as suas ideias de como que o outro, de como que a vida tem que ser que tornam a sua vida essa miséria. E não só isso. Aquele que faz o que os outros esperam dele achando que estão os ajudando ao fazer isso não passa de um bobalhão que apenas ajuda a criar mais miséria. Se você prostitui a sua própria vontade, a sua própria espontaneidade, a sua própria alma, pelo ''outro'', você está apenas ajudando ele a permanecer o mesmo bebê imaturo que fica criando expectativas a respeito de tudo para depois poder se fazer de vítima do universo inteiro. Ao ajudar o outro a ver a vida que ele espera, você o impede de ver a vida como ela é. Você rouba dele a única coisa que ele veio fazer aqui, que é conhecer a vida. Enquanto essa ideia absurda de como a vida deveria ser estiver viva, a vida como ela é jamais será percebida, jamais será vivida. E não é só pelo outro. Quando você se vende por ele, você se destrói. Nesse ato de ''ajudar o outro'' você perde a vida que está aqui agora esperando que você desperte o seu potencial máximo. A vida não faz nada além de tentar te mostrar quem você é. Mas você prefere ser o herói. Você quer salvar o outro. Mas você mesmo ainda não se encontrou. E jamais se encontrará enquanto estiver sendo alguém ''pelo outro''. Seja você mesmo, seja o que você é. É o único jeito. Encontre quem você é e pare com esse teatro de ser o salvador do mundo, pois essa mentira só te leva cada vez mais para longe de si mesmo. Torne-te quem você é e depois disso você verá que sem nenhum esforço, só o fato de ser si mesmo será suficiente para ajudar quem estiver desfrutando o tempo com você. Seja você mesmo, que assim você finalmente encontrará sem nenhum esforço todo aquele altruísmo que você sempre procurou mas que nunca havia encontrado realmente. Nesse instante você verá como que anteriormente o que você achava que era amor nunca havia passado de brincadeira de criança. O amor agora passará a ter um significado muito diferente. Agora você ajudará os outros, mas não porque você tem que fazer isso, nem mesmo porque você quer fazer isso, não é uma escolha, não é um ato, isso passa a ser uma pura e simples consequência de sua própria natureza.