segunda-feira, 9 de abril de 2012

Trecho de Vontade de potência de Nietzsche

  O homem bom, ou a hemiplegia da virtude - Para toda espécie de homem que permanece vigorosa e próxima a natureza, o amor e o ódio, a gratidão e a vingança, a bondade e a cólera, o fazer e o não fazer são inseparáveis.
    É-se bom com a condição de que se saiba ser mau; é-se mau porque de outra forma não se poderia ser bom. De onde, portanto, provém esse estado doentio, essa ideologia contra a natureza que nega esse caráter duplo, que ensina como virtude suprema possuir somente um semivalor? De onde provém essa hemiplegia da virtude, invenção do homem bom? Exige-se do homem que se castre daqueles instintos que lhe permitem fazer oposição, prejudicar, encolerizar-se, exigir vingança… A esta desnaturação corresponde a visão dualística de um ser puramente bom ou puramente mau (Deus, espírito, homem), resumindo, no primeiro, todas as forças intenções e condições positivas; no segundo, todas as negativas. Dessa forma, igual apreciação se julga “idealista”; não duvida que é em sua concepção do “bem” que ela fixou o escopo da suprema desejabilidade. Quando ela atinge seu ápice, imagina uma condição na qual todo mal será anulado e onde, na verdade, somente sobrarão os seres bons. Ela, portanto, não admite sequer como certo, nessa oposição, que o bem e o mal sejam condicionados um pelo outro; quer, ao contrário, que o mal desapareça e que o bem permaneça; um tem o direito de existir, o outro não deveria absolutamente existir… Em suma, quem é que deseja isso?
    Tem feito, em todos os tempos, e sobretudo nas épocas cristãs, o maior esforço para reduzir o homem a essa semiatividade que é o “bem”; também hoje, não faltam seres deformados e enfraquecidos pela igreja, para quem essa intenção é idêntica à “humanização” em geral, ou à “vontade de Deus”, ou ainda ”à salvação da alma”. Exigem, antes de tudo, que o homem não faça o mal, que, em nenhuma circunstância, prejudique ou tenha a intenção de prejudicar… Para isso surtir bom efeito, recomendam extirpar todas as possibilidades de inimizade, suprimir os instintos de ressentimento; recomendam a “paz da alma”, mal crônico.
    Esta tendência, que desenvolve um tipo particular de homem, parte de uma suposição absurda: considera o bem e o mal como realidades em contradição mútua (e não como valores complementares, o que corresponderia a realidade); ela aconselha tomar partido do bem, exige que o homem bom renuncie e resista ao mal até em suas mais profundas raízes – dessa forma, nega verdadeiramente a vida que homizia em todos os seus instintos a afirmação tão bem como a negação. 
    E, longe de compreender isso, sonha em retornar à unidade, à totalidade, à força da vida; ela imagina que é um estado de salvação quando finalmente a anarquia interior, as perturbações desses impulsos contrários conhecem seu término. Talvez não tenha existido, até o presente, ideologia mais perigosa, maior desatino inpsychologicis que essa vontade do bem: fizeram desenvolver o tipo mais repugnante, o homem que não é livre, o carola; ensinaram que é mister ser-se carola para se encontrar o verdadeiro caminho de Deus, que a vida do carola é a única que agrada a Deus…
    E ainda aí é que a vida tem razão, a vida que não sabe separar afirmação da negação: que adianta esforçar-se em declarar que a luta é má, em não querer prejudicar-se, em querer não fazer! Apesar de tudo se guerreia! Não se pode fazer de outra maneira! O homem bom que renunciou ao mal, infetado por essa hemiplegia do mal, como lhe parece desejável, não cessa absolutamente de combater, de ter inimigos, de dizer não, de não fazer. O cristão, por exemplo, detesta o pecado! E quanta coisa não chama ele de pecado? É precisamente por esta crença numa oposição moral entre o bem e o mal que o mundo está para ele cheio de coisas odiáveis a que cumpre combater eternamente. “O homem bom” vê-se como cercado pelo mal, aguça sua vista e acaba por descobrir traços do mal em tudo que faz; e é assim que termina, como é lógico, por considerar a natureza como má, o homem como corrompido, a bondade como um estado de graça (quer dizer, por humanamente impossível). Em resumo: nega a vida, concebe de modo que o bem, como valor superior, condena a vida…
    Dessa maneira, sua ideologia do bem e do mal deveria ser refutada por ele. Não se refuta, porém, uma doença… E é por isso que ele concebe uma outra vida!