sábado, 1 de outubro de 2011

Conto do livro Temporais de Khalil Gibran



Os dentes cariados

Havia na minha boca um dente cariado. Era um dente ardiloso e malvado: permanecia quieto o dia todo; e só começava a doer de noite, quando os dentistas estavam dormindo e as farmácias, fechadas.
Certo dia, perdi a paciência e procurei um dentista e lhe disse: "Livre-me, por favor, deste dente hipócrita."
O dentista objetou: "Seria tolice arrancar um dente que podemos tratar."
E começou a cavar e limpar e desinfetar. Quando o dente não tinha mais cárie, o dentista o obturou e declarou com orgulho: "Este dente está agora mais sólido do que os outros."
Acreditei nas suas palavras, enchi suas mãos de dinheiro e fui embora, satisfeito.
Mas uma semana depois, o maldito dente voltou a atormentar-me.
Procurei outro dentista, e disse-lhe: "Arranque este dente sem discutir. Pois sofrer é diferente de ver sofrer."
O dentista arrancou o dente. Foi uma hora terrível, mas benéfica. E, examinando o dente, disse: "Fez bem em arrancá-ló. A cárie já atingira as raízes. Não havia meio de recuperá-lo."
Dormi em paz naquela noite e em todas as noites seguintes.
Na boca deste ser que chamamos a Humanidade, há também dentes cariados. E a cárie já atingiu a raiz. Mas a Humanidade não os arranca. Prefere tratá-los e limpá-los e obturá-los com ouro brilhante.
Quantos dentistas estão ocupados em tratar os dentes da Humanidade! E quantos doentes se entregam a esses médicos; e sofrem e aguentam - para depois morrer.
E a nação que enfraquece e morre não ressuscita, para revelar suas doenças ao mundo e a ineficácia dos remédios sociais que a levaram ao túmulo.
Na boca das nações orientais, há também dentes cariados, sujos e nauseabundos. Nossos dentistas tentam obturá-los. Mas esses dentes não se curarão. É preciso arrancá-los. Pois a nação que tem dentes cariados tem o estômago debilitado.
Quem quiser ver os dentes cariados de uma nação oriental, visite suas escolas, onde os homens de amanhã decoram o que Al-Akfash disse, citando Sibauaih, e o que Sibauaih dissera, citando os cameleiros.
Ou visite os seus tribunais, onde a astúcia esvazia as leis.
Ou visite os palácios dos ricos, onde o esnobismo coabita com a hipocrisia.
Ou visite os casebres dos pobres, onde a ignorância gera o medo e a covardia.
Depois, visite os dentistas de dedos macios e aparelhos complicados. São eles que fundam as associações e reúnem os congressos e discursam nos conclaves e nas praças públicas.
Suas palavras são melodiosas e suaves. E se lhes dissermos: "Esta nação mastiga seus alimentos com dentes cariados e saliva envenenada. E disto resultarão doenças no seu estômago", eles respondem: "Sim, sim, estamos justamente estudando as drogas mais modernas e os medicamentos mais eficazes."
E se lhes perguntarmos: "E que achais da extração?", desatarão a rir do pobre indagador, que nunca estudou a nobre ciência da odontologia.
E se insistirmos, enfadam-se e afastam-se, dizendo: "Quantos ignorantes neste mundo! E como sua ignorância é incômoda!"