terça-feira, 29 de setembro de 2009

As utopias, o anarquismo e a tragédia que é a existência humana


As crenças que nos são ofertadas, principalmente aquelas que são idealistas, ou porque não dizer utópicas, geralmente apresentam um aspecto em comum. Elas são muito mais baseadas nos nossos desejos a respeito do que queremos que seja real do que no que de fato é real. Elas normalmente nos dão respostas para questões existenciais da vida que por coincidência são exatamente as respostas que gostaríamos de ter. Para exemplificar podemos pensar por exemplo no cristianismo e no comunismo que a princípio são duas crenças bastante antagônicas, porém, se formos analisar mais a fundo, podemos ver que ambas vendem uma ilusão bastante parecida. A única diferença é que o que o cristianismo oferece no céu, o comunismo oferece na terra.
O reino de Deus é a resposta que o cristão deseja frente ao sofrimento que encontra na vida, pois como aqui ele é oprimido, infeliz, injustiçado e acima de tudo impotente em mudar o destino trágico que está fadada a ser a sua existência, o reino dos Céus passa a ser exatamente a compensação que ele tanto deseja por ter passado por tanta desgraça, é a vida em harmonia, em paz e com amor que ele sempre sonhou em ter e que sabe que jamais a terá aqui, é também a sua oportunidade de vingança contra aqueles que o oprimiram e o injustiçaram, pois muitos serão chamados e poucos os escolhidos, e certamente os escolhidos para a vida de amor eterno ao lado de Deus serão apenas os cristãos sofredores, e não os seus algozes a quem esses cristãos sempre desejaram a morte, porém sempre com tremenda impotência de realizá-la. O reino do Céus é a vingança do fraco e oprimido a tanto tempo por ele esperada, a tanto tempo por ele desejada.
Nesse sentido a sociedade vendida pelo comunismo é muito semelhante ao reino dos céus do cristão. O comunista tem a crença de que através dessa ideologia ele poderá construir aqui na terra uma sociedade onde as pessoas vivam em harmonia, em paz, sem opressão e o mais importante sem patrões. O comunismo é exatamente a resposta que o proletário sempre quis ter na vida, é o que ele sempre desejou, é a vingança final contra os burgueses exploradores e os malvados chefes, pois ao reino de Marx também muitos serão chamados e poucos os escolhidos, e obviamente apenas os proletários oprimidos serão os escolhidos, um burgues jamais entrará nesse reino.
Essas duas ideologias cresceram mundialmente e tiveram uma aceitação enorme em todos os lugares nos seus respectivos públicos alvos. Isso se deve principalmente a elas terem vendido exatamente o que as pessoas queriam ouvir, exatamente o que as pessoas sempre quiseram viver, é uma ilusão, porém uma ilusão que tocou profundamente nos desejos mais reprimidos de muita gente. Por ser uma ilusão é que os comunistas, e principalmente os cristãos que nisso são pródigos, muitas vezes negam completamente a realidade das coisas, negam a história e a razão, negam tudo que é possível negar em troca de poderem continuar acreditando na ilusão que é a sua vitória final, ou melhor dizendo, a sua vingança final. Por negarem a realidade trágica em favor de uma mentira boa é que ambos já cometeram tantos crimes ao longo de suas respectivas histórias. Nesse aspecto que diz respeito a semear a morte, o cristianismo ainda leva ampla vantagem, principalmente devido a ele existir a mais tempo, porém, os comunistas se não mudarem alguns conceitos fundamentais um dia também chegarão lá.
Ao ler esse texto você pode estar pensando agora que ao criticar o comunismo eu esteja fazendo um elogio ao capitalismo. Porém, você não poderia estar mais enganado. Eu não quis comparar o capitalismo com o comunismo ou com o cristianismo pelo fato de que eu não considero o capitalismo como uma utopia, pra mim ele é simplesmente uma estupidez, uma idiotice sem tamanho, pois através dele não dá nem para se imaginar a possibilidade de se ter uma sociedade harmônica, pacífica, e com bem estar social. O capitalismo é a destruição humana por excelência, ele se baseia na concorrência, coloca todos contra todos o tempo todo, obriga o que tem mais a precisar ter cada vez mais, ou seja, os obriga a explorar os outros cada vez mais. O capitalismo faz o pobre viver uma vida de medo permanente por causa da fome, e ao mesmo tempo obriga o rico a viver também uma vida de constante medo por causa do esfomeado. Um ganha quando o outro perde. O pobre tem desgosto da vida porque não tem esperança de algo melhor, o rico também tem desgosto da vida pois junto com o seu sucesso veio o incessante medo de perde-lo e também a necessidade de o ter cada vez mais, muitas vezes se enriquece sem nem mesmo saber o porque, simplesmente porque as coisas funcionam assim. A vida do pobre é materialmente uma desgraça, e a do rico humanamente um vazio. Basta olhar para a nossa sociedade que vemos que o número de casos de depressão e suicídio não param de subir. Por isso que não faz sentido comparar o capitalismo a essas outras crenças, simplesmente porque ele já nos seus fundamentos básicos não tem nada de bom a oferecer para ninguém.
Voltando agora as questões das utopias, das ilusões, você deve então estar se perguntando como é que pode um anarquista estar fazendo críticas à crenças utópicas. Realmente a sua preocupação tem fundamento, e faz muito sentido pensar assim, pois a maioria dos anarquistas de fato é extremamente idealista, muitos deles crêem infantilmente que se o Estado desaparecer então teremos uma sociedade organizada, sem crimes, onde as pessoas sejam felizes, onde elas se amem e se ajudem mutuamente. É uma ilusão muito parecida com a de Marx, e porque não dizer também com o reino de Deus? Este tipo de anarquismo eu também o coloco na mesma sacola das outras ilusões, é apenas um desejo reprimido de ser livre, pois até hoje em toda a história da civilização nunca houve liberdade plena de fato. Já houve liberdade para o mercado, porém nunca para os seres humanos.
Entretanto, o anarquismo pode ser entendido de outra forma, não necessariamente como a busca por uma sociedade perfeita, bem organizada e feliz, ele pode e eu o vejo como sendo a busca por uma sociedade também desordenada, trágica, cheia de problemas e sofrimentos, porém uma sociedade que simplesmente é melhor do que essa desgraçada que agente vive hoje. Não necessitamos alimentar esperanças ilusórias de que criaremos uma sociedade perfeita na terra, isso simplesmente não dá para ser feito agora, existir é uma tragédia e por enquanto não dá para fugir disso. As pessoas que tem a coragem de serem sinceras consigo mesmas percebem o que eu estou falando, que o sofrimento causado pela vida em sociedade, pela vida civilizada é por enquanto inevitável. Apenas os covardes que passam a vida inteira mentindo para si mesmos é que podem ter a falsa impressão de que a coisa não é assim, passam a vida inteira fingindo que são plenamente felizes, porém os pesadelos noturnos e o medo da solidão, ou seja o medo de estar a sós consigo mesmo os entrega e os mostra o tamanho de sua miséria.
Na anarquia haveria sofrimento, haveriam assassinatos, roubos, e todos os tipos de problema. Você deve então estar se perguntando por que diabos querer essa anarquia. É simples, pois o fato de viver ser uma tragédia não significa que não possamos rir da vida, que não possamos tentar algo que seja de fato melhor do que isso que temos hoje, e para mim a anarquia representa isso, essa ultima tentativa de algo melhor, de algo mais livre, pois ao longo de toda a história da humanidade o Estado e as leis sempre se mostraram incapazes de impedir os assassinatos, os roubos, as torturas, e inclusive muitas das vezes foi o próprio Estado que causou essas coisas, talvez até mesmo na maioria das vezes. A questão é que o Estado é a maior ilusão de todas, pois sempre foi visto como necessário para proteger os seres humanos de si mesmos, entretanto, ele claramente falhou em sua missão. Ele institucionalizou o assassinato, o roubo, a tortura. Portanto, querer a extinção do Estado, e se possível também das outras instituições de poder, ou seja, querer a anarquia, não quer dizer ter a esperança de viver em uma sociedade perfeita, simplesmente quer dizer uma nova tentativa de algo melhor, onde de alguma forma haja mais liberdade para ser si mesmo, e assim não precisar fingir ser outra pessoa. É uma tentativa de tornar a existência mais suportável, e porque não dizer também mais feliz? É apenas uma nova tentativa, na qual obviamente há a possibilidade do fracasso. Não há garantias de que de fato essa sociedade livre vá ser realmente melhor do que a que temos hoje, porém há motivos para crer que devamos ao menos tentar. Quem sabe a liberdade humana não seja capaz de resolver alguns problemas que Estado nenhum conseguiu até hoje resolver? Se a história futura nos mostrar que a anarquia foi uma fracasso, que não passou apenas de mais uma utopia e que não há nenhuma possibilidade da existência não ser uma tragédia total, então que reergamos os Estado, que sejamos outra vez comunistas, capitalistas, ou melhor ainda que voltemos a crer no reino de Deus. Porém, se a história nos mostrar o contrário, e algumas experiências como por exemplo a guerra civil espanhola de alguma forma nos faz acreditar nisso, então que sejamos anarquistas, que matemos de vez esse monstro que é o Estado, que sejamos livres para poder construir o ser humano do futuro, um ser humano que possa finalmente rir da tragédia que é a vida.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trecho de genealogia da moral de Friedrich Nietzsche


Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?... Muito bem! Aqui se abre a vista a essa negra oficina. Espere ainda um instante, senhor Curioso e Temerário: seu olho deve primeiro se acostumar a essa luz falsa e cambiante... Certo! Basta! Fale agora! Que sucede ali embaixo? Diga o que vê, homem da curiosidade perigosa - agora sou eu quem escuta.

- "Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurrar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida - é como você disse."

- Prossiga!

- "e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão ('pois eles não sabem o que fazem - somente nós sabemos o que eles fazem!'). Falam também do 'amor aos inimigos' - e suam ao falar disso."