sábado, 9 de julho de 2011

Trecho do Zaratustra de Nietzsche


Do Caminho do Criador

"Queres, meu irmão, isolar−te? Queres
procurar o caminho que te guia a ti
mesmo? Espera ainda um momento e
ouve−me.

"O que procura é um erro". Assim fala o
rebanho.

E tu pertenceste ao rebanho durante
muito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a voz
do rebanho. E tu pertenceste ao
rebanho durante muito tempo.

Em ti também ainda há de ressoar a voz
do rebanho. E quando disseres: "Já não
tenho uma consciência comum
convosco", isso será uma queixa e uma
dor.

Essa mesma dor é filha da consciência
comum, e a última centelha dessa
consciência ainda brilha na tua aflição.

Queres, no entanto, seguir o caminho
da tua aflição, que é o caminho para ti
mesmo? Demonstra−me o teu direito e
a tua força para isso!

Acaso és uma força nova e um novo
direito?

Um primeiro movimento? Uma roda que
gira sobre si mesma? Podes obrigar as
estrelas a girarem em tomo de ti?

Ai! Existe tanta ansiedade pelas alturas!

Há tantas convulsões de ambição!
Demonstra−me que não pertences ao
número dos cobiçosos nem dos
ambiciosos!

Ai! Existem tantos pensamentos
grandes que apenas fazem o mesmo
que um fole. Incham e esvaziam.

Chamas−te livre? Quero que me digas o
teu pensamento principal, e não que te
livraste de jugo.

Serás tu alguém que tenha o direito de
se livrar de um jugo? Há quem perca o
seu último valor ao libertar−se da sua
sujeição.

Livre de quê? Que importa isso a
Zaratustra? O teu olhar, porém, deve
anunciar−se claramente:
livre, para quê? Podes proporcionar a ti
mesmo teu bem e o teu mal, e
suspender a tua vontade por cima de ti
como uma lei? Podes ser o teu próprio
juiz e vingador da tua lei?

Terrível é estar a sós com o juiz e o
vingador da própria lei, como estrela
lançada ao espaço vazio no meio do
sopro gelado da soledade. Ainda hoje te
atormenta a multidão; ainda conservas o
teu valor e as tuas esperanças todas...
Um dia, contudo, te fatigará a soledade,
se abaterá o teu orgulho e cerrarás os
dentes. Um dia clamarás: "Estou só!"

Chegará um dia em que já não vejas a
tua altura, e em que a tua baixeza esteja
demasiado perto de ti. A tua própria
sublimidade te amedrontará como um
fantasma. Um dia gritarás: "Tudo é
falso!"

Há sentimentos que querem matar o
solitário. Não o conseguem? Pois eles
que morram! Mas serás tu capaz de ser
assassino?

Meu irmão, já conheces a palavra
"desprezo"? E o tormento da justiça de
ser justo para com os que te
menosprezam?

Obrigas muitos a mudarem de opinião a
teu respeito; por isso te consideram.
Abeiraste−te deles, e contudo, passaste
adiante; é coisa que te não perdoam.
Elevaste−te acima deles; mas quanto
mais alto sobes tanto mais baixo te vêm
os olhos da inveja. E ninguém é tão
odiado como o que voa.

"Como quereríeis ser justo para comigo!
− assim é que deves falar. − Eu destino
para mim a vossa injustiça, como lote
que me está destinado".

Injustiça e baixeza é o que eles arrojam
ao solitário; mas, meu irmão, se queres
ser uma estrela, nem por isso os hás de
iluminar menos.

E livra−te dos bons e dos justos!
Agrada−lhes crucificar os que invejam a
sua própria virtude: odeiam o solitário. E
livra−te ainda assim da santa
simplicidade!

A seus olhos não é santo o que é
simples, e apraz−lhe brincar com fogo...
das fogueiras.

E livra−te também dos impulsos do teu
amor! O solitário estende depressa
demais a mão a quem encontra.

Há homens a quem não deves dar a
mão, mas tão−somente a pata, e além
disso quero que a tua pata tenha garras.
O pior inimigo, todavia, que podes
encontrar, és tu mesmo; lança−te a ti
próprio nas cavernas e nos bosques.

Solitário, tu segues o caminho que te
conduz a ti mesmo! E o teu caminho
passa por diante de ti dos e dos teus
sete demônios.

Serás herege para ti mesmo serás
feiticeiro, adivinho doido incrédulo, ímpio
e malvado.

É mister que queiras consumir−te na tua
própria chama. Como quererias
renovar−te sem primeiro te reduzires a
cinzas?

Solitário, tu segues o caminho do
criador: queres tirar um deus dos teus
sete demônios!

Solitário, tu segues o caminho do
amante: amas−te a ti mesmo, e por isso
te desprezas, como só desprezam os
amantes.

O amante quer criar porque despreza!
Que saberia do amor aquele que não
devesse menosprezar justamente o que
amava?

Vai−te para o isolamento, meu irmão,
com o teu amor e com a tua criação, e
tarde será que a justiça te siga
claudicando.

Vai−te para o isolamento com as
minhas lágrimas, meu irmão. Eu amo o
que quer criar qualquer coisa superior a
si mesmo e dessa arte sucumbe".

Assim falou Zaratustra.

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